No último dia 31 de dezembro, foi publicado no Diário Oficial o texto da chamada “primeira etapa da reforma tributária”. Um dos temas mais controvertidos é a guerra fiscal: o texto final extinguiu o prazo fixado pela Câmara (incentivos até 30 de setembro de 2003, prorrogados por até 11 anos), permitindo que a guerra fiscal ocorra até a promulgação definitiva da emenda constitucional.
Dentre as modalidades de danos causados pela guerra fiscal (não menos graves do que a perda de arrecadação gerada pela renúncia dos Estados à arrecadação de impostos) está a possibilidade de institucionalização da concorrência desleal entre empresas sediadas em Estados diferentes. Vale destacar que isto pode constituir infração à ordem econômica no Brasil, sendo vedado tanto pela Constituição Federal como pela lei 8.884/94, a lei de defesa da concorrência. Ainda assim, trata-se de conseqüência inevitável da guerra fiscal.
Não é difícil perceber o porquê da concessão de benefícios fiscais por um Estado para determinada empresa poder gerar grave desequilíbrio na concorrência: de modo geral, as empresas que recebem incentivos fiscais acabam tendo o seu desempenho mascarado; com a redução nos custos fixos representada pela economia em impostos, uma empresa fica em flagrante vantagem em relação ao seu concorrente sediado em um outro Estado, onde incentivos fiscais não são concedidos.
Genericamente, pode-se presumir que a empresa beneficiada passa a não mais ter necessidade de investir no aumento da qualidade de seus produtos ou serviços, pois sabe que poderá formular um preço inferior aos de seus concorrentes “não incentivados”; esta empresa pode ainda dar-se ao luxo de se instalar em local onde o custo é mais alto (em razão da distância do mercado consumidor, carência de infra-estrutura adequada, etc.), desde que o incentivo recebido compense a diferença. Os prejuízos causados à economia como um todo por esta prática são claros.
A guerra fiscal permite também que a estrutura de formação de preço das empresas incentivadas possa ser artificialmente modificada, possibilitando o uso de preços predatórios – aplicar os preços abaixo do custo variável médio, para eliminar concorrentes e, em um momento posterior, praticar preços mais elevados – ou sua manutenção em nível “normal” para que a empresa aufira lucros maiores que os dos concorrentes. Tudo isto compromete a sobrevivência da empresa não beneficiada e afeta o jogo de mercado em que se baseia o princípio constitucional da livre concorrência.
A Lei 8.884/94 prevê que infrações à ordem econômica deverão ser apuradas e reprimidas pelas autoridades que fazem parte do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência: CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e SDE (Secretaria de Direito Econômico), com a possível participação da SEAE (Secretaria de Acompanhamento Econômico).
Assim, qualquer empresa que se julgar concorrendo com outra que usufrua de benefícios gerados pela guerra fiscal, tem o direito de levar a questão, por meio de uma representação, ao exame destas autoridades. Alguns obstáculos, entretanto, fazem com que até o momento esta ferramenta tenha sido muito pouco utilizada.
A principal dificuldade certamente reside no fato de existir somente uma única decisão do sistema sobre guerra fiscal; trata-se de resposta do CADE, em 1999, à consulta formulada pelo PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais). Nesta decisão, o CADE reconheceu não só sua competência para analisar a questão mas também os efeitos perversos da guerra fiscal para a livre concorrência; como tratava-se de uma consulta, entretanto (que não fazia referência a nenhum caso específico), não houve qualquer tipo de condenação (e a conseqüente imposição das diversas penalidades previstas na lei).
Assim, não existem decisões proferidas sobre casos concretos; isto por si só faz com que o sistema ainda não seja reconhecido pelas empresas e Estados da Federação como mecanismo eficiente no combate à guerra fiscal.
Alguns outros obstáculos, de natureza mais processual, podem ser mencionados; dentre eles, possíveis dificuldades para (i) obtenção de evidências de que a empresa investigada realmente auferiu vantagens mercadológicas em razão de incentivos fiscais e (ii) estabelecimento de nexo causal entre a concessão do benefício causal e o prejuízo gerado à concorrência em um mercado específico. É incerta, ainda, a possibilidade do Estado que concedeu determinado incentivo fiscal, e não somente a empresa beneficiada, poder ser responsabilizado pela prática de guerra fiscal em detrimento da livre concorrência.
Enfim, mesmo diante destas dificuldades, fica claro que o sistema brasileiro de defesa da concorrência tem plena legitimidade para atuar no combate aos efeitos da guerra fiscal na economia. Sua eficácia nesta tarefa, por outro lado, ainda está para ser verificada, o que somente ocorrerá à medida que venha a ser efetivamente utilizado por aqueles que se sintam prejudicados.
André Marques Gilberto
é advogado. agilberto@araujopolicastro.com.br