No seminário “Combate à fome e à pobreza”, realizado recentemente pela Folha de S. Paulo e pelo IPEA (Folha de S. Paulo, 31/5/2002, A8), ficou clara a existência de divergências metodológicas entre os especialistas acerca da definição da linha de pobreza ou de indigência, o que leva a resultados diferenciados na quantificação dos pobres e indigentes do País.
Não obstante, os estudos existentes apontam várias opções razoáveis para caracterização dos pobres e indigentes, como por exemplo partindo-se da renda necessária para o atendimento das necessidades alimentares mínimas, não se tratando de questão puramente arbitrária.
Talvez pela pluralidade metodológica, inexiste ainda, pelo menos declaradamente, uma linha oficial de pobreza ou um critério oficial para definição dos pobres no Brasil, o que é até prejudicial para formulação e avaliação das políticas públicas voltadas aos pobres.
Entretanto, as políticas governamentais mais recentes voltadas aos pobres e que envolvem a concessão a eles de auxílio em pecúnia ou em bens como o Bolsa-Escola (Lei n.º 9.533, de 10/12/97), o PETI (Portaria n.º 458, de 3/12/2001, da Secretaria da Assistência Social), o Auxílio-Gás (Decreto n.º 4.102/2002), o Programa de Geração de Renda (Portaria n.º 877, de 3/12/2001, da Secretaria da Assistência Social), o Agente Jovem (Portaria n.º 879, de 03/12/2001, da Secretaria da Assistência Social), definem como público alvo pessoas ou famílias com renda “per capita” de até meio salário mínimo, ou seja, atualmente, R$ 100,00.
Da mesma forma, podem filiar-se, oficialmente, ao Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (Decreto n.º 3.877/2001), medida relacionada com o já anunciado “Cartão Cidadão”, as famílias beneficiadas pelos referidos programas sociais e todas as demais que tenham como renda “per capita” até meio salário mínimo.
A utilização de tal critério em repetidos programas voltados aos pobres permite concluir que o governo reputa pobres ou indigentes aqueles com renda “per capita” de até meio salário mínimo.
O critério pode até ser questionado, havendo dúvidas se o governo teve por base alguma espécie de estudo empírico.
Há que se admitir, de todo modo, que é ele é até razoável, sendo louváveis tais políticas governamentais, especialmente diante da ausência de iniciativas semelhantes no passado.
Chama, porém, a atenção o fato de que não é ele seguido em importante política governamental de transferência de renda aos pobres, especificamente o benefício de um salário mínimo pago aos idosos e aos portadores de deficiência que não tenham condições de prover o seu próprio sustento nem de tê-lo provido por sua familía.
Com efeito, a Lei n.º 8.742/93, definiu como beneficiários apenas os idosos e portadores de deficiência de renda “per capita” inferior a um quarto do salário mínimo, ou seja, atualmente, R$ 50,00.
É difícil entender o motivo da diversidade de critérios.
O benefício pago aos idosos e aos deficientes pobres é, por certo, normalmente superior aos benefícios pagos pelos outros citados programas governamentais. Ocorre que o valor do benefício encontra-se mais relacionado com a possibilidade de quem arca com o encargo respectivo do que propriamente com a necessidade do beneficiário. Outrossim, o fato de ser pago benefício de valor superior aos idosos e deficientes de renda inferior a um quarto do salário mínimo em nada alivia a situação dos idosos e deficientes de renda entre um quarto do salário mínimo e até meio salário mínimo que nada recebem. Não é, portanto, a variação do valor dos benefícios que autoriza a utilização de critérios diferenciados.
Do outro lado, os idosos e os deficientes constituem grupos especialmente vulneráveis, seja pela sua dificuldade de inserção no mercado de trabalho, seja por possuírem necessidades especiais em relação a outras pessoas, como gastos elevados com saúde. Sua condição especial autorizaria o governo a utilizar critérios menos restritivos quanto à renda nos programas governamentais a eles voltados, mas nunca o contrário.
Assim, a utilização de critérios diferenciados e mais restritos nos programas voltados aos idosos e aos deficientes pobres não parece encontrar justificativa razoável, soando arbitrário.
Seria, portanto, necessária, pelo menos por amor a coerência, a revisão do critério mais restritivo dirigido aos idosos e aos deficientes pobres. A responsabilidade pela realização de tal revisão é do Legislativo. Também é do Executivo, pois é notória a influência deste na vontade e na agenda legislativa. Aliás, projetos legislativos para revisão da lei não faltam. Faltam apenas deliberação e aprovação.
Enquanto, porém, a Lei n.º 8.742/93 não for alterada, podem, os juízes constitucionais, diante da arbitrariedade do critério nela previsto e de sua conseqüente inconstitucionalidade, porque se trata de concretização do direito fundamental previsto no art. 203, V, da Constituição Federal, substituírem, no julgamento dos casos concretos o critério mais restrito pelo menos restrito. Afinal, normas de direito fundamental, ainda que dependentes de legislação reguladora, não se encontram à disposição do legislador. Aliás, normas conhecidas de direito fundamental contêm remissões à concretização legislativa, como por exemplo, a liberdade de profissão religiosa (art. 5.º, VI), liberdade de profissão (art. 5.º, XIII), liberdade de locomoção (art. 5.º, XV), sem que jamais se tenha admitido que estariam à disposição do legislador.
É inegável que, mais recentemente, surgiram sinais do maior comprometimento da sociedade brasileira com a erradicação da pobreza. A presença de tal tema na mídia e no debate público é crescente. Da mesma forma, com propósitos sinceros ou não, foi inserido na Constituição um “Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza”. A luta contra a pobreza é complexa e, como dizia Joaquim Nabuco em sua campanha contra a escravidão e suas conseqüências, é empresa superior aos esforços de uma só geração. No entanto, a complexidade da tarefa não justifica que não sejam tomadas pequenas iniciativas como a ora defendida. Doutro lado, em uma democracia todos devem ser tratados com igual respeito e consideração. Caso nada seja feito, restará à sociedade, mas especialmente às autoridades públicas, a difícil tarefa de explicar aos idosos e aos deficientes pobres a utilização de critérios diversos quando o que está em consideração são os benefícios a eles dirigidos.
Sergio Fernando Moro
é juiz do Juizado Especial Federal de Joinville/SC e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná.