Todo começo de governo é como a trajetória do caranguejo, que anda para frente, para os lados e para trás. Pode-se até garantir que o caranguejo anda mais para frente do que para trás. Assim mesmo, os governos que assumem querem significar avanços, mudança, sentido de inovação. Os passos para frente abrigam a melhoria de programas, projetos e serviços. Os passos laterais equivalem ao que, no vulgo, se costuma dizer: trocar seis por meia dúzia, ou seja, há governos que continuarão no mesmo lugar. E os passos para trás são dados por uma parcela de quadros que, escolhidos pela via política, ou representam a politicagem ou pretendem reinventar a roda, paralisando ações e programas, a título de começar do zero. Bilhões de reais são perdidos, a cada início de governo, em função da descontinuidade administrativa.
Os três tipos de passos do caranguejo definem a desarmonia existente na administração pública no País. Para começar, há duas classificações existentes na burocracia pública a demonstrar que o fator político continua balizando os rumos das administrações. Os cargos de confiança e os funcionários de carreira constituem dois pólos que geralmente se atritam, aqueles com maior poder de fogo do que estes, e, até por isso, levando a administração por caminhos nem sempre retilíneos e curtos. Fatias ponderáveis de ministérios e secretarias de Estado são oferecidas a políticos que costumam fazer dos espaços conquistados feudos para abrigo de sua política de clientela. Amigos, assessores, parentes tomam conta de cargos importantes, enquanto funcionários de carreira competentes, muitos imbuídos de espírito público, são deixados na Sibéria gelada do esquecimento.
Os governos iniciantes têm uma idéia fixa: querem passar a impressão de que vão fazer as coisas que seus predecessores não conseguiram. São movidos pela necessidade de criar uma identidade, uma marca própria. E nesse afã, acabam passando por cima de ações e programas eficazes das gestões anteriores, desviando o rumo de coisas já iniciadas, mudando o curso dos investimentos, abrindo novos roteiros de atuação. O rombo do custo Brasil da descontinuidade é monumental. Por isso mesmo, a primeira coisa a ser feita deveria ser o levantamento acurado e objetivo de ações positivas e de projetos inócuos dos governos anteriores. Dar continuidade ao que é bom, eliminar o que é ruim, essa é a medida do bom senso.
Há funcionários de carreira preparados e altamente qualificados na administração pública brasileira. Infelizmente, a politicalha e o caciquismo político acabam corroendo seus potenciais, pois, nos lugares mais importantes da administração, ingressam perfis despreparados, cujo maior compromisso é o de atender às demandas de seus patrocinadores, os próprios secretários de Estado e ministros ou chefes e lideranças políticas. Na esteira da improvisação e da irresponsabilidade que campeia na administração pública, planos estratégicos acabam cedendo vez às ações paroquiais e ao balcão das trocas e recompensas. Por isso mesmo, há uma dose de verdade quando se diz que falta à União e aos Estados um planejamento de longo prazo. Não por falta de capacidade de fazê-lo e sim por excesso de interesses da velha política e seus representantes.
Outra mazela da administração pública é a ausência de controle das decisões. As ordens emanadas do topo nem sempre são cumpridas ou são apenas parcialmente executadas. O presidente da República ou mesmo o ministro, do alto de seus cargos, não têm condições de acompanhar a dinâmica e o cotidiano dos atos e afazeres. Muitas decisões são deixadas de lado, arquivadas ou proteladas. O chá de gaveta é muito comum. Muitos burocratas de terceiro e quarto escalões e funcionários de fim de linha, dando importância exagerada a suas funções, ou para atender solicitações e pressões, costumam criar sua dinâmica, dando vazão à cultura do fisiologismo e mudando o fluxo dos atos normativos. Daí para a corrupção, é um passo.
Nos Estados menores, os controles são balizados pelo olho político de grupos. A orquestra estadual que toca o Hino das Mudanças vai afinando o tom, ao longo dos quatro anos de mandato da administração, e, ao final, a música que se ouve é a mais parecida possível com a melodia de fim de festa, uma espécie de “está chegando a hora, e vamos todos nos refestelar”. Nos Estados maiores, a racionalidade administrativa integra o conceito de Governo e a lupa da mídia flagra os desvios e práticas amorais, de maneira mais contundente. Houvesse honestidade de propósitos, as administrações se sucederiam escudando-se na eficácia dos programas. A administração pública teria menos gente interessada em reinventar a roda. Afinal de contas, o Brasil já foi suficientemente diagnosticado. E as soluções não constituem uma questão de genialidade. Estão na cara de todos.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautorq@gtmarketing.com.br