Os embriões excedentários e os direitos sucessórios

O início da vida, da personalidade do ser humano e de sua caracterização como sujeito de direitos sempre foi muito discutida no mundo jurídico. Mister se faz a compreensão da personalidade civil e o momento de seu começo, sendo estes requisitos fundamentais para que a pessoa adquira direitos e contraia obrigações.

O Direito das Sucessões pode ser considerado, segundo Silvio Rodrigues, como o conjunto de princípios jurídicos que disciplinam a transmissão do patrimônio de uma pessoa que morreu aos seus sucessores. É nesse contexto que se insere a questão apresentada.

Fundamentos jurídicos

O Código Civil Brasileiro de 1916, em seu artigo 4.º, define: “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”.

A teoria adotada pela maioria de nossos doutrinadores e aparentemente adotada pelo nosso ordenamento no artigo infra-mencionado é a que estabelece que a personalidade civil do homem começa com o seu nascimento com vida.

Desta forma, o nascituro não é considerado pessoa, mas tem expectativa de direitos, desde sua concepção, para aquilo que lhe é juridicamente proveitoso. Não lhe é conferida personalidade jurídica, tão menos capacidade de direito, todavia, serão protegidos os direitos que ele possivelmente terá.

É importante frisar que direito sucessório já era garantido ao nascituro desde a antigüidade clássica grega e romana.

Em regra, o nascituro terá plenos direitos à herança. Para isso, faz-se essencial que ao tempo da morte do autor da herança aquele já esteja concebido e que venha a nascer com vida.

O direito sucessório permite que herdem pessoas não concebidas ao tempo da morte do autor da herança

O art. 1718 do Código Civil, por sua vez, diz: “São absolutamente incapazes de adquirir por testamento os indivíduos não concebidos até a morte do testador, salvo se a disposição deste se referir à prole eventual de pessoas por ele designadas e existentes ao abrir-se a sucessão”.

Portanto, o artigo referido abre oportunidade para o testador (que possui a intenção de deixar prole eventual) contemplar seus eventuais herdeiros. Conclui-se ser esta uma exceção ao direito sucessório conferida pelo ordenamento brasileiro.

O pré-embrião criopreservado fora do útero da mãe é mais um avanço da ciência não previsto e não regulamentado pelo Código Civil de 1916. Tal condição está carecedora de uma tutela específica, visto que deve ser diferenciada da condição do nascituro.

Pelas novas técnicas reprodutivas, o embrião já concebido pode ser congelado indefinidamente para depois ser implantado no útero. Pode este ter sido gerado com os gametas do casal ou de terceiros estranhos à relação, podendo ainda ter sua gestação em útero que não o da mãe biológica.

O ordenamento jurídico brasileiro não impede e também não restringe a fertilização humana, tendo apenas como requisito o consentimento da mulher e, se casada, de seu marido ou companheiro.

A reprodução assistida é regulada apenas pela Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, sendo que os projetos de lei acerca do assunto tramitam pelo Congresso Nacional, mas não têm eficácia legal. Uma das diretrizes desta Resolução é a vedação ao descarte ou destruição dos pré-embriões, o que pode resultar a formação de uma nova relação jurídica.

Não há dúvidas de que o filho de uma pessoa, nascido por meio de qualquer das técnicas de reprodução assistida, terá os mesmos direitos e deveres dos demais filhos de tal pessoa. Para que possa herdar, basta ter sido concebido ao tempo da abertura da sucessão, que venha a nascer com vida e que seja filho do de cujus.

Entretanto, a questão que ora se enfoca diz respeito aos embriões concebidos e criopreservados. Estes não são considerados nascituros e sua condição jurídica é indefinida, carecedora de proteção.

Para que possa fazer parte da sucessão legítima, tal embrião deverá estar implantado no útero feminino, pois só assim terá capacidade sucessória para herdar.

Estando o embrião implantado no útero feminino, com o consentimento do de cujus, ao tempo de sua morte, não restará dúvidas de que sua filiação será assegurada e que terá direito à herança.

Ao embrião fecundado, mas não implantado, restam as seguintes conseqüências jurídicas:

1.

Nunca poderá herdar por sucessão legítima, pois não tem a condição de nascituro e a mãe não tem o direito de implantá-lo no momento que quiser ou achar oportuno. O de cujus não poderá ser titular de relação jurídica nova.

2.

Poderá herdar, desde que o de cujus assim disponha em seu testamento, aplicando-se em analogia a prole eventual, e desde que indique que será a mãe do beneficiário. Neste caso busca-se a vontade do testador.

3.

No que tange a inseminação pós-morte, que se dá quando o sêmen ou o óvulo do de cujus é fertilizado após a sua morte, não há que se falar em direitos sucessórios.

Ainda sobre o tema (mais especificamente sobre a questão da filiação), merece transcrição o entendimento de Eduardo de Oliveira Leite (citado por Gustavo Tepedino, p.415, nota 36):

“Vale, pois, ressaltar que a doação de gametas (esperma+óvulo) não gera ao seu autor nenhuma conseqüência parental relativamente à criança daí advinda. A doação é abandono a outrem, sem arrependimento, nem possibilidade de retorno. É conforme se afirmou acima, medida de generosidade, medida filantrópica.”

No mesmo sentido, Gustavo Tepedino:

“Daí decorre que, uma vez estabelecidas a paternidade e a maternidade de quem encomendou o material genético, pouco importará a origem genética do esperma doado, para efeito de estabelecimento da filiação ? a doação, como visto acima, não acarreta qualquer vínculo parental. A procriação assistida, portanto, prova o vínculo de paternidade, determinando quem são os genitores, por vínculo não sanguíneo, do mesmo modo como, na adoção plena, cancela-se a origem biológica em favor da integral recepção voluntária na família adotiva.”

Maria Christina de Almeida, no decorrer de seu artigo, assevera:

“É fato que o elo biológico que une pais e filhos não é suficiente a construir uma verdadeira relação entre os mesmos. Basta verificar nas demandas de paternidade que, muitas vezes, o filho conhece seu pai por meio do DNA, mas não é reconhecido por ele por meio do afeto. Em outras palavras, a filiação não é um dado ou um determinismo biológico, ainda que seja de natureza do homem o ato de procriar. Em muitas das vezes, a filiação e a paternidade derivam de uma ligação genética, mas esta não é o bastante para a formação e afirmação do vínculo; é preciso muito mais. É necessário construir o elo, cultural e afetivamente, de forma permanente, convivendo e tornando-se, cada qual, responsável pelo elo, dia após dia.”

A nova legislação civil, por sua vez, a entrar em vigor provavelmente em janeiro de 2003, acresceu mais hipóteses de presunção de concepção. (A presunção de concepção é um aspecto da presunção de paternidade, a conhecida presunção pater is est. O Código de 1916, no art. 317, presumia a paternidade dos filhos concebidos na constância do casamento. Mas sendo a concepção de data desconhecida, o art. 338 também a presume. Todavia, a Lei n.º 8560/92 revogou o art. 337, por se referir ele à filiação legítima (de acordo com o art. 227, § 6.º da Carta Maior). Pode-se dizer que tal revogação deixou uma falha no ordenamento; o art. 338 menciona a presunção de concepção mas não diz o que fazer com a mesma. A nova lei, por sua vez, simplesmente repetiu o sistema anterior, permanecendo-se assim, a citada falha e a ausência de maiores esclarecimentos sobre o tema.)

O artigo 1597 do Novo Código Civil assim dispõe:

“Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

(…)

III ? havidos por fecundação artifical homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV ? havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V ? havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.”

Em artigo publicado na revista Panorama da Justiça, o advogado Mario Delgado, traz a seguinte interpretação do artigo 1597, do Novo Código Civil:

“Nos casos de concepção artificial homóloga, em que inseminação é feita com o sêmen do marido, diz o novo código que os filhos daí havidos presumir-se-ão concebidos na constância do casamento, pouco importando se a implantação do embrião venha a ocorrer anos após a dissolução do vínculo conjugal.”

Ainda segundo o mesmo autor:

“Em resumo, havendo inseminação artificial homóloga, o pai da criança será necessariamente o dono do sêmen, no caso do art. 1597, o marido ou ex-marido, sendo indiferente ao direito, a época em que venha ocorrer a gestação. A regra não poderia ser diferente e atende ao princípio maior que é o da verdade biológica. Nos casos de inseminação heteróloga, é natural que se exija a autorização prévia do marido, para que se estabeleça a presunção.”

O inciso IV estabelece, portanto, que se presumem havidos na constância do casamento os filhos gerados a qualquer tempo, através embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga.

Não acreditamos ser esta a solução acertada para a questão, porquanto existem hoje no Brasil, cerca de 11.000 embriões armazenados em botijões de nitrogênio líquido e a cada vez que uma mulher se submete a tratamento para fertilização assistida, pelo menos oito óvulos são extraídos e fecundados, com o intuito de aumentar as chances de sucesso para a efetiva gestação, todavia apenas quatro são implantados no útero da mulher.

Mesmo com tal previsão legal, entendemos não haver vínculo que possibilite o estabelecimento de direitos sucessórios no que tange aos embriões excedentários, visto que a gestação de tais embriões não decorre da vontade do “de cujus“, ainda que considerados pelo código como havidos na constância do casamento.

Isto posto, consideramos que para a existência de eventuais direitos sucessórios, necessária, em vida, a manifestação da vontade dos pais.

Conclusão

O direito sucessório decorre da filiação, o que se resolve a partir do vínculo de paternidade. De extrema e fundamental importância se faz o consentimento dado em vida por aquele que deixou embriões criopreservados, ao tempo de sua morte.

Este consentimento determina os direitos do nascituro e forma o vínculo de filiação, fazendo com que o embrião criopreservado não seja apenas filho quanto à identidade genética do de cujus, mas que seja filho capaz de participar da sucessão legítima.

Levando-se em conta que, acima da verdade biológica, o sistema jurídico brasileiro faz prevalecer a verdade jurídica, pode-se responder à indagação formulada negativamente (ou seja, não há que se falar em direito sucessório no que tange aos embriões excedentários).

Assim, quanto à inseminação post mortem, temos que atualmente ela se faz quando o sêmen ou o óvulo do de cujus é fertilizado após a sua morte. Em tal caso por ter sido a concepção efetivada após a morte do de cujus, não há que se falar em direitos sucessórios a ele.

A comunidade científica, já fala em “superpopulação” de embriões e segundo Edson Borges, presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, em declarações prestadas ao Jornal do Brasil (edição do dia 17/02/2002), o problema dos embriões excedentários armazenados “é um problema real. É uma bomba-relógio que não vai demorar muito a explodir”.

O Novo Código Civil, em seu artigo 2.º, garante os direitos do nascituro, “desde a concepção”. Tal dispositivo, gera problemas para a criação de legislação futura, que não poderia dispor sobre a destruição de embriões excedentários, o que seria a solução, segundo parte da comunidade científica.

A solução, segundo a doutrina, seria a manutenção do dispositivo garantindo os direitos no nascituro, todavia com a supressão do texto “desde a concepção”, permitindo então a legislação futura sobre a questão dos embriões excedentários.

Nadia Hommerschag Nora

é advogada em Londrina-PR, pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Estadual de Londrina-PR.

Rita de Cássia Resquetti Tarifa

é advogada em Londrina-PR, pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Estadual de Londrina-PR.

William Peixoto Ferreira dos Reis

é advogado em Londrina-PR, pós-graduando em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Estadual de Londrina-PR

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