Existe uma execrável dicotomia convencionada pela jurisprudência (e, de certa forma, estimulada, também, pela doutrina) entre dois alicerces do processo penal: o in dubio pro reo e o in dubio pro societate. Com efeito, do quanto se dimana das exortações pretorianas, a relação entre esses dois princípios é tratada como um antagonismo dialético de extremidades opostas, como se os interesses do réu fossem uns e os interesses da sociedade fossem outros, diametralmente inversos. No cotidiano forense, não é raro se deparar com julgados que passam a idéia, explícita ou subjacente, de que o réu tem interesses contrários aos da sociedade, enunciada em frases do tipo "na pronúncia não vigora o princípio do in dubio pro reo, mas sim do in dubio pro societate". Com essa retórica vazia, a fórmula in dubio pro societate tem sido utilizada como um subterfúgio evasivo para servir de substrato à pronúncia do acusado.
A idéia dessa contraposição tem como trampolim epistemológico a premissa de que réu (de um lado) e sociedade (de outro lado) alimentam interesses divergentes. E não é assim. Réu e sociedade (do mesmo lado) cultivam – em princípio – garantias convergentes a uma mesma finalidade: a preservação do Estado Democrático de Direito. Sem embargo, é necessário ter em mente uma ótica orgânica da sociedade, em que a violação aos direitos do réu (individualmente considerado) signifique, por vias mais ou menos transversas, uma turbulência às garantias de toda a sociedade (genericamente considerada), porque todos (réu e sociedade) fazem parte de um mesmo organismo social coeso, de modo que o todo (a sociedade) sem a parte (o réu) não é todo. Assim, não é possível subverter a idéia apriorística de confluência de garantias em divergência de interesses entre réu e sociedade. Adotar o pressuposto de que réu e sociedade nutrem um antagonismo constitui uma visão maniqueísta inconcebível. Preservar as garantias do réu significa, ainda que de forma indireta, assegurar os direitos da sociedade.
Na sentença de pronúncia, esses tênues meandros da dogmática jurídica podem revelar conseqüências desastrosas. Apesar de constituir um juízo de admissibilidade, de conteúdo meramente declaratório, a pronúncia torna-se suscetível a manobras ardilosas, chegando, muitas vezes, a ser explorada como arma de ataque contra o réu, em Plenário, perante os juízes leigos, mormente se a decisão tiver sido confirmada por acórdão do Tribunal, em sede de recurso em sentido estrito. E o que é pior: no afã de fundamentar a decisão, não raro, a linguagem usada na pronúncia transborda os estreitos limites da admissibilidade declaratória, invadindo o terreno do mérito, em antecipação ao veredicto do conselho de sentença, abrindo margem ao (ab)uso da pronúncia como arma da acusação.
De fato, a fase da pronúncia constitui um hiato jurídico de complexa solução. De um lado, se a decisão é por demais contundente, há o abismo da invasão de mérito; de outro, se o juízo é por demais omisso, existe a lacuna da ausência de fundamentação.
Por tudo isso, em assembléia na Pós-Graduação da Universidade Cândido Mendes, após um debate exaustivo sobre o assunto, surgiu uma proposta (de potencial repercussão legislativa a ser repensada pelo parlamento): ao se encaminhar o caso a Júri Popular, concluiu-se que a pronúncia – após o seu trânsito em julgado – deveria ser temporariamente desentranhada dos autos e arquivada em cartório, para que, em Plenário, não invadisse o campo de percepção consciente ou inconsciente dos jurados, nem pudesse ser usada contra o réu, até mesmo porque – como já se disse alhures – constitui juízo meramente declaratório de admissibilidade processual, refugindo ao interesse dos jurados (que devem analisar a prova dos autos) o conhecimento do conteúdo da pronúncia. Não obstante, cabe ponderar que inúmeros pronunciados preferem não manejar o cabível recurso em sentido estrito contra a pronúncia, omitindo-se do acesso ao duplo grau de jurisdição, em face da ameaça do potencial efeito boomerang da via recursal, quando o acórdão de improcedência é explorado negativamente em Plenário.
É uma idéia a ser (re)pensada.
Adriano Sérgio Nunes Bretas é recém- formado pela Faculdade de Direito de Curitiba – bretasadvocacia@yahoo.com.br