Os donos da bola querem também o apito

 

“Os debates em torno da reforma política mal começaram e já surgem ideias que, a prosperar, ameaçam transformar o que seria uma excelente oportunidade para aperfeiçoar nossa democracia representativa num esforço inútil. Passou a ser alvo de alguns parlamentares nada menos do que a própria Justiça Eleitoral, e não demorou até serem ensaiadas notas sugerindo desde a imposição de limites à sua atuação, até – pasmem – quem sabe a extinção do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Quando o assunto é política e as discussões assumem tons compreensivelmente apaixonados, perdoam-se estes ou aqueles excessos; porém, quando se trata de uma ação articulada, é o caso de se preocupar. Ou, antes, buscar compreender as causas desse movimento, que a crermos no noticiário se originou em meio a políticos insatisfeitos com a atuação do tribunal nas eleições de 2010 (provavelmente também nas de 2008, 2006 e assim por diante).

A insatisfação decorre da suposta interferência ou, segundo alguns, do “poder concentrado e excessivo” do TSE quando edita resoluções supostamente diferentes do que a lei contém. Segundo levantamento realizado pelo TSE, 85% das resoluções apenas repetem o que já diz a lei, 10% reproduzem a jurisprudência da Corte e 5% tratam dos procedimentos de cada eleição.

Logo, mais sensato seria admitir a inexistência de uma legislação clara sobre todos os aspectos importantes de uma eleição do que tentar pôr a culpa na Justiça Eleitoral. Não é novidade que querelas internas e interesses momentâneos são responsáveis pela falta de consenso entre os próprios parlamentares sobre o tema, mas o curioso é que, mesmo diante de toda insegurança que isso provoca, insiste-se em defender a proposta de se enviar à Justiça comum os casos nos quais os partidos não cheguem a um acordo. Mais ou menos como uma partida de futebol em que o dono da bola é também o juiz. Só que o jogo democrático não se disputa em várzea.

Desconhecemos registro, em toda a história republicana brasileira, de uma eleição que não tenha sido marcada por denúncias de fraude, suborno e querelas capazes de adiar a posse do eleito ou surpreender o eleitor com a anulação de sua escolha. A Justiça Eleitoral surgiu a partir de 1932 como a primeira tentativa de freio ao nepotismo, ao mandonismo, ao filhotismo e à toda sorte de nefastos “ismos” que caracterizavam a política dos “coronéis” de então, retratada com brilhantismo pelo advogado Victor Nunes Leal em sua imortal obra Coronelismo, enxada e voto. Silenciou por oito anos, justamente quando se instalou a ditadura do Estado Novo, ressurgindo em 1945 com as feições que mantém até hoje. De lá para cá, o Brasil mais urbano e mais complexo soterrou outra ditadura no caminho com a força das urnas, e ao fazer a opção democrática não relegou a Justiça Eleitoral ao museu. Ao contrário, deu-lhe mais representatividade e responsabilidade.

Normas e diretrizes baixadas pelo TSE à falta de legislação consistente emanada pelo Congresso podem, é claro, assumir contornos controversos. Plausível, necessário mesmo, é o seu enfrentamento, como ocorreu com a Lei da Ficha Limpa, cujo adiamento se deve a uma conjugação de fatores que vão desde a sua rápida tramitação, seu notório reconhecimento pelo Tribunal Superior Eleitoral até uma cadeira que não podia estar vazia no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) na hora decisiva. O ditado é antigo, mas democracia é assim mesmo: um aprendizado contínuo.

Nesse sentido, questionar a reconhecida missão pedagógica do TSE ao longo dos últimos anos, ora transformando a tecnologia em poderosa aliada da democracia, ora estimulando e valorizando o eleitor anônimo, e, por fim, consagrando, como se deve, que todo o poder emana do povo, soa no mínimo estranho, como um eco de um passado que não desejamos repetir”.

Ophir Cavalcante é presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Artigo publicado no Correio Braziliense, em 15/4/11.

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