O delegado, bacharel Serra, fingia ler alguns papéis espalhados pela mesa. De vez em quando, por cima dos óculos, dava uma olhada furtiva para o detido. Mas, encontrando um olhar penetrante, altivo e destemido, baixava logo os olhos, sem coragem de fitá-lo.Paradoxalmente, parecia ser ele o culpado e o prisioneiro, embora algemado, algum corregedor inspecionando a delegacia. Como viera parar ali essa criatura?
Alguns policiais que faziam uma ronda em determinada praça encontraram certa mulher fazendo uso do crack. Perguntada sobre quem lhe fornecera a droga, apontou o dedo indicando que fora aquele indivíduo.
Ele se defendeu dizendo: “cabe ao acusador o ônus da prova”. Como não entenderam a resposta, julgaram-na como um desacato à autoridade. De forma truculenta, algemaram-no e o levaram à delegacia para averiguações. Ao delegado disseram:
– Este elemento, além de ter sido acusado por tráfico de droga, ainda nos desacatou. Serra, pela forma singular de conduzir um inquérito, era considerado meio louco pelo pessoal da delegacia. Saiu de seu lugar, puxou uma cadeira, sentou-se bem de frente ao acusado e examinou-o com olhar severo. O tipo, modestamente trajado, tanto poderia ser um traficante disfarçado ou um cidadão comum que nada devesse. Arriscou uma pergunta óbvia:
– Você vendeu crack àquela mulher?
– Senhor delegado, disse o acusado, após pensar por alguns minutos. Há poucos dias eu estava sentado à mesa de um bar. Estava só. Um homem aparentando cinqüenta anos aproximou-se de mim, pediu licença e sentou-se numa cadeira vaga ao meu lado. Nunca o vira antes. Começou a falar com desenvoltura sobre temas dos quais eu não entendia nada. De tudo que ele disse só duas frases eu guardei. Sempre repetia: “assim falou Zaratustra”. Também me lembro de suas últimas palavras antes de desaparecer: Não existem fatos, apenas interpretações.
O bacharel Serra não era jejuno em assuntos filosóficos. Gostava de ler. Lia muito. Quando expunha pensamentos a seus subalternos, eles, por não entenderem nada, julgavam-no “pirado”. Sabia, portanto, quem escrevera Assim falou Zaratustra: Nietzsche. Concluiu que aquele detido ou era louco ou tinha voa cultura para inventar aquela aparição do filósofo…
– Por outro lado continuou calmamente o detido não julga o senhor tratar-se de um abuso de autoridade manter-me assim algemado? A mim que, além de atitude pacífica, sem resistência, desarmado, estou vigiado de perto por esses brutamontes? Não há perigo de fuga nem de agressão, de minha parte. Logo, acabe com esta humilhação que, para mim, é uma palhaçada. Os senhores estão a me tratar como se eu fosse animal, uma fera.
O delegado achou que era justa sua argumentação quanto às algemas. Mas, antes de tirá-las, querendo também imitar o detido, inventou uma aparição. Saberia assim em que terreno estava pisando. Lembrou-se de trechos de um livro que lera ainda à época da faculdade. Olhar vago, como que se esforçando para lembrar um acontecido, falou:
– Longe de mim considerar você um animal. Veja porque. Numa noite destas, sentei-me na sala para bater papo com minha mulher. Ela acabara de assistir a um capítulo de novela e desligado a televisão. Eis que, sem que víssemos como apareceu, sentou-se conosco um padre. Assustei-me. Perguntei à esposa se fora ela que tinha convidado, mas disse-me que não. Vestia-se como padre, mas suas palavras eram de um cientista. Falava sobre o aparecimento da vida na Terra, o aparecimento do homem. Não citou nem uma vez a Bíblia. Estranho. Entretanto, de suas últimas frases, num sotaque francês, lembro-me muito bem: A reflexão, como a própria palavra indica, é o poder adquirido por uma consciência de se dobrar sobre si mesma e de tomar posse de si mesma… Já não só conhecer mas conhecer a si próprio; já não só saber mas saber que se sabe. Bem entendido, o animal sabe. Mas, com toda a certeza, não sabe que sabe…
O acusado, com toda a segurança, nem pensou para observar:
– Ora, delegado. Em primeiro lugar, o senhor copiou minha estratégia da aparição. Ademais, esse padre todos sabem era Pierre Teilhard de Chardin. Cientista, paleontólogo e geólogo. Os cientistas tinham reservas sobre suas teorias; a Igreja quase o excomungou por suas idéias revolucionárias. Não acontecera ainda o Vaticano II. Morreu pela metade o século XX. O senhor deve é ter lido o livro dele O Fenômeno Humano… Ou, pelo menos, o trecho em que ele trata do alvorecer do Pensamento.
Ao ouvir a precisa observação do detido, teve a certeza de que não se tratava de um homem inculto. Rapidamente, com a chave que trazia no bolso, tirou-lhe as algemas. Só então se lembrou de que não sabia ainda o nome do averiguando. E, meio sem jeito:
– Qual é mesmo seu nome?
– Meu nome é o mais comum e da família mais numerosa “deste país”: José da Silva. Pode me chamar de Zé.
O advogado Dr. Roberto era amigo de Serra; era um desses que vagueiam pela delegacia procurando o que não perdeu. Sem ser percebido, estava a poucos metros dos dois homens. Ouviu tudo desde o início. Acercou-se deles e não resistiu à vontade de se tornar partícipe. Serra e Roberto provocavam Zé. Este, sempre atento para não cair em alguma cilada, ou contestava ou esclarecia. Roberto, querendo mostrar cultura:
– O pensamento é tão importante para diferenciar o Homem dos Animais, que Descartes falou sua célebre frase cogito ergo sum (penso, logo existo).
– Ora, Dr. Roberto, falou Serra. Não era bem isso que Descartes quis dizer. Sua idéia era que não se pode aceitar sem duvidar os dogmas da tradição, dos filósofos, dos reis ou autoridades, mesmo eclesiásticas. Só devo confiar naquilo que meu pensamento dita.
– Veja que paradoxo, observou Zé: negava a autoridade eclesiástica, mas, depois de traduzir Meditações Metafísicas para o latim, pediu e obteve do bispo de Paris o Nihil obstat ou Imprimatur, enfim, ordem de impressão…
– Senhor José, argüiu já com deferência o delegado Serra. Acha que com isto se encerra a discussão sobre a diferença entre o homem e o animal?
– Obrigado pelo “senhor José”. Acho que não. Já no século XVIII, o filósofo suíço Jean Jacques Rousseau, após muito estudo, concluiu que é a perfectibilidade que os diferencia: o animal nasce com seu código genético. Seu aprendizado tem começo e fim. Ensine a um animal determinada tarefa e ele pode fazê-la com perfeição. Mas não desenvolve, por ele mesmo, nada mais. O homem, grosso modo, tem a faculdade de educar-se: a educação tem começo, mas só termina com a morte. Em outras palavras, isto significa que só o homem tem a liberdade; liberdade de, afastando-se da natureza, dominá-la e desenvolver-se até quase o infinito.
Roberto queria a todo custo inserir algo importante na discussão. E conseguiu. Como a Ética sempre fora seu ponto forte, não perdeu tempo:
– Immanuel Kant, o filósofo prussiano do século XVIII, baseando-se em Rousseau, praticamente fundou a moral moderna: só o homem tem a liberdade de escolher entre o mal que a natureza manda e o bem que só pode realizar lutando contra ela. Como o homem é, por natureza, egoísta, Kant dá a essa luta o nome de imperativo categórico. É necessária a boa vontade. Nessa concepção, minha liberdade deve terminar onde termina a do meu vizinho. Claro que aqui só dei umas pinceladas resumo do resumo…
– Muito bem, Roberto. Acho que temos folheado os mesmos livros… Você esqueceu de falar da virtude. Não seria interessante você ter lembrado de que ela só vale se for uma ação desinteressada e voltada para o bem comum? Se se espera algo em troca, já não há virtude nessa ação…
Os três homens calaram-se enquanto esperavam por uma nova idéia. Após aquele silêncio que parecia final de conversa, Serra saiu com esta:
– Como bem disse Shakespeare: Há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia. Zé não se conteve e falou em tom de repreensão:
– Dos lugares-comuns que já ouvi, esse é o mais batido…
Silêncio de novo. Agora mais curto. O delegado Serra que, como Roberto, não sabia nada a respeito de José da Silva, perguntou a ele:
– Afinal, que é você? Que faz nesta vida?
– Peço-lhes licença, disse Zé, para responder-lhes usando um pensamento do filósofo inglês Bertrand Russel: No universo visível a Via Láctea não passa de uma pequena mancha desprezível; dentro dessa mancha, em meio a bilhões de estrelas, brilha uma de quinta grandeza (o Sol) e em torno dela giram alguns planetas; num deles (a Terra) pequenos aglomerados de carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio e algumas impurezas rastejam durante alguns anos até se dissolverem nos elementos que os compõem. Eu sou uma dessas impurezas que rastejam…
Lauro Del Valle é é médico do Serviço de Cirurgia Torácica da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba.