Na minha infância e juventude, idades em que não se admite perder, comecei a torcer pelo melhor time da época, o Santos FC e, claro, pelo Pelé. Talvez por serem épocas remotas do futebol (cerca de 40 anos atrás), não me lembro de fatos de polícia ou de política no futebol profissional. Provavelmente existia, eu é que era, em razão da idade, um alienado e fanático torcedor, e sabemos que fanatismo leva à cegueira.
Posteriormente, o futebol começou a ganhar com determinada intensidade as páginas policiais e/ou políticas, principalmente no período da ditadura militar, quando o ditador general Médici obrigou que o seu jogador preferido fosse convocado e o grande Reinaldo foi punido por um gesto após um gol em cima da Argentina.
Nos últimos anos, o futebol ganhou, com mais intensidade, as páginas políticas e policiais, sendo inclusive a CBF, federações e clubes alvos de duas CPIs, que demonstraram parte da podridão guardada nos porões do futebol profissional brasileiro. Paralelamente a isso ganhou espaço também, na sociedade e nos meios de comunicação, o debate sobre uma política de desportos e a necessidade de legislação sobre o tema. Porém, o grande debate esperado não é feito e o Poder Executivo, na era FHC, insiste em legislar, de maneira parcial, através de medidas provisórias, e somente voltado para o futebol profissional. Sistematicamente ignora os demais esportes, principalmente, o amador e o educacional. Também se omite não combatendo as fraudes, a corrupção e os desmandos que existem nas federações e boa parte dos clubes de futebol, bem como em algumas instituições do esporte amador. Pelo contrário, quando o Brasil, por mérito de seus excelentes atletas, ganha algum campeonato ou torneio no exterior, homenageia inclusive os dirigentes corruptos.
Nesse ímpeto de legislar, nega a existência de um projeto de lei, o Estatuto do Desporto, que tramita na Câmara Federal, e edita no curto espaço de três anos a terceira MP sobre o tema. Em relação a isso, a primeira questão que se coloca é que, por si só, o ato de legislar por MP é autoritário e sem nenhuma possibilidade de debate, uma vez que a mesma entra em vigência imediatamente. Em vigor tem a duração de 60 dias prorrogáveis por outros tantos dias. Só nesse período existe algum debate e reformulação. Porém, caso ao fim de todo o processo, não seja transformada em lei, alguns dos efeitos desta MP permanecerão para sempre, a menos que a Câmara aprove um decreto legislativo revogando-os, coisa quase que impossível em curto prazo.
Por essas e outras razões a MP não é o melhor caminho para legislar. Soma-se a isso o péssimo hábito que o governo FHC tem: o de incluir tema alheio ao mérito da matéria tratada na MP. Não raras vezes são enxertados, como foi o caso da MP 79, temas sequer correlatos, como é o caso do seu artigo 14. Este artigo altera a Lei n.º 10.359, de dezembro de 2001, que dispõe sobre a obrigatoriedade de os novos aparelhos de televisão conterem dispositivo que possibilite o bloqueio temporário de programação inadequada. Essa lei e esse artigo trazem a obrigatoriedade de os aparelhos de TV, com o dispositivo de bloqueio, começarem a ser comercializados a partir do dia 28 de dezembro próximo. Pela MP 79, a do futebol, essa obrigação é transferida para 30 de junho de 2004. O que têm os srs. Caio Luiz de Carvalho (ministro do Esporte e Turismo) e FHC, para nos explicarem? Estão eles a serviço das empresas fabricantes de televisores? Ou são favoráveis a que nossas crianças e adolescentes assistam às baixarias da TV?
Existem alguns pontos positivos nessa MP, como o que dá um prazo de 30 dias (vence em 28 de dezembro próximo), para os clubes e a CBF publicarem o balanço de 2001. Estabelece, também, o prazo até 14 de fevereiro de 2003 para que os clubes publiquem os dados referentes ao exercício de 2002. Nos balanços a serem publicados, devem constar a destinação e a origem de recursos, bem como todas as transações financeiras e a demonstração dos lucros ou prejuízos acumulados. Tais informações devem ser publicadas em órgão oficial da União ou do Estado, e também em jornal de grande circulação.
A necessidade da divulgação desses balanços não é novidade, pois isso já está previsto na Lei Pelé. Mas como ela não estabelece sanção aos clubes e/ou aos seus dirigentes, ela não é cumprida. Agora, caso descumpram a lei, a MP 79 prevê a possibilidade do afastamento compulsório dos dirigentes (vamos apostar para ver!).
Na história do futebol brasileiro, o mais sofrido tem sido o torcedor. Ou porque o seu time perde (caso previsível de sofrimento), ou porque é maltratado pelos dirigentes e pelas péssimas condições dos estádios. Pois, esse sofrido torcedor foi lembrado na MP 79, colocando como direito seu recorrer ao Código de Defesa do Consumidor, quando vítima da falta de segurança nos estádios. E garante a busca de seus direitos junto à entidade detentora do mando do jogo.
FHC e o ministro Caio ao editarem essa MP deram uma no cravo e outra na ferradura. Se por um lado obriga a publicação da contabilidade (trabalho árduo para os dirigentes desonestos), favorece aos clubes pelos menos em dois artigos (3.º e 8.º). O artigo 3.º estabelece o ressarcimento para os clubes formadores de profissionais (esquece os amadores, o que já é uma injustiça) e dá a responsabilidade do ressarcimento a outro clube, instituição ou ao atleta formado. Como nesta relação – clube/instituição/atleta o elo frágil é o atleta, provavelmente, ou será o eterno escravo do clube (empresa) formador, ou o responsável por esse ressarcimento.
O artigo 8.º, ao estabelecer que não possui natureza salarial a quantia paga pela exploração comercial da imagem do atleta, legaliza a precarização dos direitos trabalhistas dos mesmos. Com isso a MP legaliza, também a prática de vários clubes, que pagam aos atletas quantias gigantescas a título de direito de imagem, e salários irrisórios, de modo a escapar da incidência de encargos trabalhistas. Prejudica, assim, não apenas o atleta, mas também a própria sociedade, através do não recolhimento das contribuições previdenciárias.
Geralmente setores desinformados da imprensa fazem duras críticas ao parlamentar ou à Câmara Federal que altera ou deixa de aprovar determinada legislação. Porém, muitas vezes o que se apresenta é complexo e/ou contraditório para ser mantido numa legislação. Caso específico dessa MP, que não cobre todas as necessidades de uma legislação desportiva e nem sequer a do próprio futebol profissional. Numa leitura mais atenta que a feita por esse autor, provavelmente muita coisa será encontrada, como o preconizado no artigo 9.º. Nele está especificado que os sócios das entidades desportivas que não se constituírem em sociedade, empresa responderão solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais. Significa que o sócio de um clube (por exemplo, dono de cadeira cativa), poderá responder por processo de presumido crime cometido pela direção do clube.
Na pressa de final de mandato, uma aberração é cometida nessa MP. O seu artigo 12 estabelece a antecipação de partes – o que diz respeito às entidades esportivas – do Código Civil. Código este que irá entrar em vigor somente a partir de 10 de janeiro do próximo ano. Essa antecipação cria enorme confusão na legislação, o que é próprio em muitos momentos do governo FHC, e especificamente da legislação sobre o futebol brasileiro.
O futebol brasileiro não voltará a ser o que era nos idos tempos da minha juventude: esporte, lazer, entretenimento, enfim, alegria, principalmente de final de semana. Estamos na época em que o mercado é quem manda e, como no futebol, o mercado atua sobre o coração e as paixões, precisa o Estado, apesar de ser negado pelo mercado, atuar na defesa dos apaixonados e fanáticos torcedores. Precisamos de uma lei que coloque ordem na razão e a MP 79 está longe de ser essa legislação.
Dr. Rosinha é deputado federal pelo PT-PR e foi relator para a Região Sul da CPI da Câmara que investigou irregularidades no futebol brasileiro.