Em 1992, a convite do juiz Francisco de Paula Xavier Neto, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) integrei a comissão nacional de estudo e pesquisa para elaboração da Cartilha da Justiça. Precisávamos saber o que o povo pensava sobre a Justiça, sobre o Poder Judiciário, sobre o juiz.
A pesquisa para a elaboração da Cartilha foi desenvolvida em cinco Estados da Federação; fiquei responsável pela pesquisa no Estado do Paraná e também pela tabulação geral da pesquisa realizada pelos demais magistrados integrantes da comissão. Ouvi pela primeira vez que a Justiça Criminal brasileira era destinada aos 3 pês (P.P.P.), traduzido pela entrevistada como “pobres, pretos e prostitutas”. Não havia ainda, naquela época, maiores preocupações com a criminalidade organizada que se infiltra nos poderes públicos e se esconde em atividades aparentemente lícitas. O resultado da pesquisa foi um choque e percebemos quanto teríamos que explicar, informar, justificar…
A comissão percebeu um grande afastamento entre a Justiça e a população, entre o magistrado e os jurisdicionados e também uma incompreensão sobre o funcionamento do Poder Judiciário. Críticas e mais críticas sobre nossa maneira complicada de falar, de escrever e de se comunicar em geral com o destinatário da Justiça, o Povo.
Ao iniciar a carreira e ainda como juiz substituto atendendo a “vara criminal” de Rio Branco do Sul, havia 6 audiências com 20 interrogatórios. Uma delas, a quinta audiência do dia, eram oito os acusados: abria formalmente a audiência, lia integralmente a denúncia e pronunciava as palavras sacramentais que havia aprendido: “O senhor não está obrigado a responder as perguntas que eu lhe formular, mas o seu silêncio poderá ser interpretado em seu desfavor!” Ninguém me contava nada… Quando já estavam terminando os interrogatórios e já um pouco cansado, entrou uma das acusadas, em um crime de roubo, e eu disse: “Diga minha filha!” E… para minha surpresa, ela disse mesmo: “Olha vou te contar para você, sabe o Zezinho ele é que estava com a escopeta, o Chico é que rendeu o porteiro e o tio ficou de vigia, o Jota tava de motorista e foi quem trouxe as coisas pro carro…”Imediatamente determinei a volta de todos os outros acusados, o Zezinho, o Chico, o tio, o Jota que interrogados não haviam me contado absolutamente nada sobre o roubo.
E por aí vão os exemplos que tenho colecionado de casos reais em que não nos comunicamos adequadamente com a população. Um professor do Rio de Janeiro relatou o caso de um frentista de posto de gasolina que ao receber um mandado para depor como testemunha, pediu a conta para o patrão, mandou a mulher arrumar as coisas e estava fugindo da cidade. É que no mandado estava escrito que se ele não comparecesse deveria arcar com as despesas da diligência e seria conduzido mediante vara, dentre outras preciosidades encontradas na nossa linguagem jurídica.
Será que o favelado, excluído, que mora em numa invasão, que puxou um gato do poste, que adotou o filho à brasileira… Vai procurar o advogado, o juiz, o promotor de justiça quando precisar resolver seus problemas? O fenômeno da anomia é preocupante e o cidadão começa encontrando a identidade no chefe do tráfico de drogas, que fala sua língua e “resolve seus problemas”. A criminalidade está ocupando espaço que deveria ser ocupado pelo Estado.
Para isso precisaremos nos sintonizar e adequar as nossas atividades com ações organizadas e integradas. Entre todos os organismos que atuam direta ou indiretamente – nas esferas da segurança pública. Essa sintonia depende da união e de um resgate da nossa auto-estima inclusive em relação ao povo. Nossas ações iniciais terão de passar pela necessária valorização dos juízes criminais, dos promotores de justiça que atuam na esfera criminal, dos policiais, que perderam o orgulho e não mais se identificam como policiais. A nossa motivação (a motivação da magistratura já está em andamento).
Para a magistratura a valorização começou por ouvir os juízes criminais. Pela primeira, vez um governador do estado pede uma proposta para a magistratura, pela primeira vez os juízes criminais estão tendo a oportunidade de trazer sua experiência. É muito importante saber o que pensa a autoridade judiciária – e a percepção dos juízes frente à criminalidade é fundamental. Basta lembrar que são os juízes criminais que decretam a prisão preventiva, a temporária, a quebra de sigilo telefônico, bancário, fiscal, de comunicação – correspondência. É a autoridade judiciária quem defere buscas e apreensões, dentre outros fundamentais instrumentos de combate à criminalidade, e busca de elementos probatórios que assegurem a justa causa para uma ação penal.
Ainda haverá necessidade de uma ação conjunta, coordenada e cooperativa da autoridade policial e do ministério público. Não há combate ao crime organizado sem um ministério público forte e atuante, nem operação alguma poderia se estabelecer sem a sua efetiva participação. Quanto melhor trabalhar a polícia judiciária, melhor será o trabalho dos promotores de Justiça e ao final melhor será o trabalho final dos juízes. Somos os consumidores da prova (recebemos um prato feito), quanto melhor for a investigação (melhor for esse prato) melhor será a justiça.
A inspiração italiana da “Operação mãos limpas” merece, entretanto algumas reflexões. O combate à corrupção e ao crime organizado deverá ser desenvolvido nos exatos limites da nossa Constituição da República, observando-se o devido processo legal e o mais amplo direito de defesa. Daí a fundamental, indispensável e valiosa integração dos advogados e dos instrumentos de defesa dos direitos e garantias fundamentais, do habeas-corpus, da liberdade provisória, do dever constitucional do juiz de relaxar a prisão ilegal, e tantos outros remédios de combate aos abusos. Não há ação legítima que se estabeleça sem proteção aos direitos e garantias fundamentais. O juiz como o advogado, embora como cidadãos, desejam o fim da corrupção e do crime organizado, atuarão de acordo com suas sagradas atribuições. O juiz será sempre juiz, independentemente do criminoso, estará a julgar fatos, publicamente, com base em provas produzidas mediante o princípio contraditório, assegurando a todos o sagrado direito de defesa. O advogado será sempre advogado defendendo o cidadão e cumprindo sua personificação como o próprio direito de defesa. Princípios não podem ser negados – e a ação criminal não pode se transformar num instrumento de terror ou de opressão. Por isso a isenção, independência e imparcialidade dos magistrados. Sempre que houver lesão ou ameaça de lesão a direito, o juiz exercerá com independência seu típico poder jurisdicional.
A população paranaense espera nosso empenho, nossa união no combate a corrupção e a criminalidade organizada. As pessoas algumas vezes até tem vontade de denunciar os corruptos, mas enfrentam o natural medo de que o registro de sua ocorrência não seja investigado e que prevaleça a impunidade, ou que seu ato seja objeto de represálias por parte dos criminosos. O cidadão precisa sentir o nosso apoio – apoio do Estado para denunciar os corruptos e ser um verdadeiro cidadão. É necessário dar segurança ao cidadão (seja ele a própria vítima ou uma testemunha) de maneira concreta, clara e específica no sentido de que sua ocorrência será examinada e investigada, se necessário mantendo-se o sigilo inicial a respeito da identificação do denunciante. O crime organizado usa a intimidação e a ameaça como métodos de manter o sucesso de suas operações ilícitas e por isso é imprescindível um bom programa estadual de proteção à testemunha: precisamos nos unir para que esse programa saia do papel
Peço a Deus que nos acompanhe (a todos, juízes, promotores, advogados, policiais, escrivães, servidores….) nessa nossa jornada de estudos a fim de que possamos contribuir para que nossos filhos e as futuras gerações tenham um Paraná limpo, com mais honestidade e menos violência espero ter o prazer de contrariar Ruy Barbosa para afirmar:
De tanto ver crescer, a cada dia, a justiça.
De tanto ver triunfar, a cada dia, a verdade,
De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos das pessoas de bem,
Me animo da virtude, chego a exaltar a honra
E ter muito, muito, muito, orgulho de ser honesto.
Roberto Portugal Bacellar é juiz de Direito e presidente da Associação dos Magistrados do Paraná.