Olhos atentos

A câmera flagra o menino com a boca aberta e os olhos atentos enquanto os fogos iluminam a madrugada de um ano novo. O céu riscado em vermelho, branco, azul, verde. Os olhos seguindo o movimento, e a boca recusando-se à expressão de não-me-importismo. O interesse é intenso e o corpo, ainda frágil, abandona-se esquecido no colo do pai.

Quantas milhares de vezes esta imagem se repetiu ao espocarem os foguetes no início do ano? Em quantos lugares do mundo? Foram protagonistas apenas as crianças?

As imagens deram conta de uma alegre irmandade: a dos adoradores das estrelas substitutas, dos arabescos sonoros e coloridos, construídos em luzes efêmeras, num ambiente intensamente eufórico. Os noticiários repetiram em clipes rápidos, mas eloqüentes, a saudação ao novo ano nos mais variados pontos do planeta.

Passada a euforia, despertamos para o sol, a manhã, os problemas e os propósitos, a continuação. Mas a memória reteve, fiel e guardiã, as luzes, o bem-estar, o encantamento. Afetados fomos, afetados continuamos.

Esta é a essência do que chamamos celebração.

A noção de um novo ciclo, de outro período, de recomeço, é extremamente marcante. O paradoxo desse renascimento é a manutenção do vínculo inalienável com o tempo ultrapassado, o que ficou "para trás". Nas palavras, o prefixo re e o adjetivo novo pressupõem essa anterioridade.

Assim também são as histórias. Todas elas, em especial as pertencentes à tradição.

Convém deter a frase para, com o respaldo da história da língua, buscar a etimologia do verbo latino trad, traduzido por "dar em mão, entregar, passar a outro, confiar, dar", verbo que, em latim vulgar, também origina "trair, atraiçoar, abandonar, ceder, renunciar".

Quando as histórias nascem para nós (seja pela leitura, seja pela oralidade), renovam a celebração da autoria. Quando se trata de criações coletivas, mais intensamente a etimologia da entrega, do passar ao outro e da confiança se realiza. Mesmo aquelas que vêm de tempos remotos, e até ágrafos, entregam-se a um outro que as escreve, e assim registra e melhor divulga.

O conhecimento dessas narrativas faz ecoar na memória traços, fragmentos de enredo, personagens, crenças ali guardados de tempos de meninice e de abandono em colos maternos e paternos. Ler ou ouvir as novas histórias é reconhecer, conhecer de novo. É renovar a celebração do engenho humano, transformando a realidade em narrativas de encantamento e aprendizagem para a vida.

Essa reflexão surge a propósito de dois livros. O primeiro deles, Bocas do tempo, de Eduardo Galeano (L&PM, 2004), retoma em narrativas minimalistas, organizadas em imenso e maravilhoso vitral, a história esquecida dos homens e seus feitos ao longo do tempo. Sem limites geográficos, embora privilegiando a América Latina, o escritor retoma, na poesia das palavras, o cotidiano de seres até então anônimos, ou momentos ignorados de pessoas famosas, Nessa aparente sensaboria dos atos rotineiros, Eduardo Galeano faz explodir as luzes do insólito, do significativo, da afirmação do ser humano enquanto motor da história e enquanto integrante do universo.

O mar

"Fazia quase um século que Rafael Alberti a levava pelo mundo, mas estava contemplando a baía de Cádiz como se fosse a primeira vez.

Do terraço, estirado ao sol, perseguia o vôo sem pressa das gaivotas e dos veleiros, a brisa azul, o ir e vir da espuma na água e no ar.

E virou-se para Marcos Ana, que calava ao seu lado, e apertando seu braço disse, como se nunca tivesse sabido, como se tivesse acabado de ficar sabendo:

– Como é curta a vida."

Galeano entrega, assim, para os leitores, os registros de uma história vivida e não escrita, mas circulante em vozes e falas de povos e nações.

Também da tradição oral, Ricardo Azevedo recupera as narrativas das três etnias formadoras da cultura brasileira em livro belíssimamente ilustrado por ele mesmo, e com motivos do folclore brasileiro -à moda da literatura de cordel. Trata-se de No meio da noite escura tem um pé de maravilha! (Ática, 2003). É uma coletânea de histórias recolhidas do povo e dos livros, e que apresenta o Moço bonito imundo, A mulher dourada e o menino careca, A mulher do viajante, Dona Boa-sorte mais dona Riqueza e algumas outras narrativas.

A leitura produz a experiência da simbiose entre histórias já conhecidas e a novidade de soluções e personagens incomuns, num universo de magia e comunhão entre todos os seres do universo: pássaros, onças, árvores, frutas, homens e mulheres. Fazendeiros e peões convivem com reis e princesas, a metamorfose é procedimento rotineiro, os animais falam, e os finais são felizes.

Da pesquisa em livros de antropologia, folclore e na oralidade dos contadores, Ricardo Azevedo recebeu o bastão de histórias que registra em estilo próprio, de ritmo ágil e linguagem próxima da oralidade. Reconta e não trai.

O leitor, ao mergulhar nesses livros, experimenta a sensação de olhar o céu e ver nele as luzes renovadas de fogos ancestrais.

Errata: Em meu texto anterior, No despertar de um ano que cochila, saiu mutilada a sentença final. Para os leitores atentos, segue a correção. Leia-se: "Que tenhamos todos um 2005 que fizermos por merecer". Se ninguém pôs reparo na ausência, fica para mim um alerta: preciso melhorar os textos futuros.

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