O Direito, como mecanismo regulador de condutas, encontra-se ligado indissoluvelmente às transformações humanas e socioculturais. Podem estas últimas surgir a partir de mutações político-ideológicas operadas em uma determinada sociedade ou, como na questão ora analisada, ter como gênese consideráveis avanços científicos, o que faz com que sejam abandonados conceitos até então tomados como verdades imutáveis.
Desse modo, os avanços tecnológicos no campo da biologia fizeram surgir situações sociais de risco que exigem a pronta intervenção do Direito Penal. Para que tais pretensões sejam satisfeitas, o ordenamento jurídico pátrio vem sofrendo constantes alterações, iniciadas com a Constituição Federal de 1988 (art. 225, § 1.º, II, IV e V), e regulamentadas no primeiro momento pela Lei 8.974/1995, e, atualmente, pela Lei 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de Biossegurança).
A conduta delitiva trazida a lume pela Lei n.º 11.105/2005 em seu artigo 27 consiste em liberar ou descartar OGM no meio ambiente, em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização.
Busca-se proteger o ambiente e, cumulativamente ou alternativamente, a vida e a saúde dos seres humanos, refletindo imperativos de biossegurança(1).
Os fatores que influíram na mudança de valores em prol da biossegurança são em parte os avanços da genética e biologia molecular, e, de outra parte, o desenvolvimento de instrumentos de precisão, como a engenharia genética.(2). No que diz respeito ao sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum) e o sujeito passivo é a coletividade.
As condutas incriminadas consistem em liberar (tornar livre, desfazer-se de algo) ou descartar (deixar de usar ou jogar fora após o uso) OGM no meio ambiente, em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização.
Entende-se por liberação a introdução deliberada no ambiente de organismo geneticamente modificado em desacordo com a normativa legal. Isso pode ocorrer quando não são tomadas as medidas de confinamento, que têm por fim evitar o contato com a população ou com o meio ambiente. Na realidade, a liberação é a fase que vem logo após a utilização confinada (em laboratório), no processo de desenvolvimento de um OGM. A liberação é feita sempre com fins não comerciais.
Há, nesse ponto, uma clara manifestação do princípio da precaução (ou da cautela), que exige a adoção de medidas preventivas na hipótese de falta de dados ou de incerteza científica, tanto na área ambiental, como da saúde humana. O problema se acentua fora exatamente do denominado risco permitido (risco conhecido, mensurável e previsível) – referido à prevenção -, e emerge exatamente no caso de risco suspeitado, não mensurável, e imprevisível. Não é aplicável a toda e qualquer situação de risco, mas apenas àquelas que têm como base a incerteza científica e a eventualidade de danos graves e irreversíveis.
Aduz-se ainda que esse princípio, característico da denominada sociedade pós-industrial ou de risco(3), formador de uma verdadeira cultura do risco(4), tem funções de orientação e de interpretação – postulado regulador(5) -, em geral não-positivado, com seu raio de aplicação delimitado, sobretudo, à matéria administrativa, seja ambiental, seja de saúde e de biomedicina, para os casos de risco potencial, sem causa, aleatório (responsabilidade pelo risco). Portanto, o princípio da precaução impõe a consideração do risco hipotético e duvidoso, de mera suposição, ou simplesmente potencial como um risco do risco. Não se confunde, portanto, com o princípio da prevenção, concernente ao risco provável, e que tem por escopo a prevenção de riscos já conhecidos.
Na seara jurídico-penal, mais especificamente, sua utilização é particularmente difícil, haja vista as peculiaridades inerentes à matéria penal, que não pode operar com lastro em meras suposições ou hipóteses.
O elemento normativo jurídico organismo geneticamente modificado (OGM) é aquele cujo material genético (ADN/ARN) tenha sido alterado por qualquer técnica de engenharia genética. Os organismos geneticamente modificados englobam todos os microorganismos (v.g., bactérias, vírus), animais e plantas que são objeto de manipulação genética.
Não se inserem no conceito de organismo geneticamente modificado aqueles resultantes de técnicas que impliquem a introdução direta, num organismo, de material hereditário, desde que não envolvam a utilização de moléculas de ADN/ARN recombinante ou OGM, tais como: fecundação in vitro, conjugação, transdução, transformação, indução poliplóide e qualquer outro processo natural (art. 3., § 1.º, Lei 11.105/2005 – Lei de Biossegurança).
Portanto, as técnicas de reprodução assistida, em especial a fecundação in vitro, não estão inseridas no conceito de engenharia genética, visto que não implicam a alteração da constituição genética do organismo manipulado.
A liberação compreende a finalidade de que os OGMs interajam com o ambiente; o descarte, de seu turno, não abrange tal escopo: é o mero ato de se livrar de organismos que não tenham mais nenhuma utilidade. Nenhuma das duas condutas, porém, pressupõe a verificação de nenhum resultado, tratando-se ambas de crimes de mera atividade e de perigo abstrato. A realização das duas condutas dá lugar a dois delitos distintos: trata-se de tipo misto cumulativo.
A liberação e o descarte, contudo, para que configurem delitos, devem ser efetuados com desrespeito às normas estabelecidas pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização.
Trata-se de hipótese de lei penal em branco, que depende, para sua complementação ou integração, de outro dispositivo legal no caso, as normas prescritas pela referida comissão (art. 10, Lei 11.105/2005) ou outros órgãos competentes (art.16, Lei de Biossegurança).
A expressão ?em desacordo? é elemento normativo jurídico que se refere à ausência de justificante, que, presente, torna a ação atípica e lícita.
No que se refere ao tipo subjetivo é representado pelo dolo, consciência e vontade de realizar as condutas incriminadas no tipo objetivo.
A consumação perfaz-se com a liberação ou o descarte de OGM no meio ambiente, em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização. A tentativa, em tese, não é admissível.
A hipótese do parágrafo 2.º, prescreve em seus parágrafos formas qualificadas dos respectivos delitos.
Se da liberação ou do descarte de organismo geneticamente modificado (OGM) resultar dano a propriedade alheia -prejuízo ao bem imóvel de outrem – aumenta-se a pena de um sexto a um terço (art. 27, § 2.º, I, Lei 11.105/2005).
Na hipótese em que advenha dano ao meio ambiente, agrava-se a pena de um terço até a metade (art. 27, § 2.º, II). Trata essa majorante de alteração das propriedades ambientais através da perda do controle de organismo geneticamente modificado.
Caso resulte lesão corporal de natureza grave em outrem, aumenta-se a pena da metade até dois terços (art. 27, § 2.º, III).
Impende, nesse passo, examinar as conseqüências que agravam especialmente a pena, motivando a classificação como lesão corporal de natureza grave: a) incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias: engloba as atividades, lucrativas ou não, desenvolvidas rotineiramente pela pessoa; b) perigo de vida: é a probabilidade concreta e iminente de um resultado letal, que deve ser atestado por laudo pericial fundamentado; c) debilidade permanente de membro, sentido ou função: é o enfraquecimento, a redução ou a diminuição da capacidade funcional dos membros, sentidos ou funções; de parto: consiste na expulsão do feto antes do término da gestação (parto prematuro), ou mesmo no tempo normal, mas desde que em decorrência do trauma físico ou moral sofrido(6). E, finalmente, se da conduta advém a morte de outrem, a pena é aumentada de dois terços até o dobro (art. 27, § 2.º, IV).
Comina-se pena de reclusão de um a quatro anos, e multa (art. 27, caput). Agrava-se a pena de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se resultar dano a propriedade alheia; de 1/3 (um terço) até a metade, se resultar dano ao meio ambiente; da metade até 2/3 (dois terços), se resultar lesão corporal de natureza grave em outrem; de 2/3 (dois terços) até o dobro, se resultar a morte de outrem. (art. 27,§ 2.º, I, II, III e IV, respectivamente).
O processo e o julgamento desse delito são de competência da Justiça Estadual. A suspensão condicional do processo é cabível no caput, em razão da pena mínima (igual ou inferior a um ano) abstratamente prevista (art. 89, Lei 9.099/1995). A ação penal é pública incondicionada.
O artigo 28, da Lei 11.105/2005 por sua vez, veda a conduta de utilizar, comercializar, registrar, patentear e licenciar tecnologias genéticas de restrição do uso. Nesse dispositivo tutelam-se a biossegurança, em particular o ambiente (patrimônio florestal). Quanto ao sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum) e o sujeito passivo é a coletividade.
O tipo objetivo descrito nesse dispositivo consiste em utilizar (usar, empregar), comercializar (negociar, alienar), registrar (inscrever, consignar por escrito, anotar), patentear (registrar como patente) e licenciar (autorizar, permitir) tecnologias genéticas de restrição do uso.
Comercialização é todo ato que suponha uma entrega a terceiros, a título oneroso ou gratuito, de OGM ou de produtos que o contenham. Os controles aqui devem ser rígidos, pois essa atividade propicia que o produto entre em contato com o meio ambiente ou a população.
Entende-se por tecnologias genéticas de restrição do uso elemento normativo jurídico -qualquer processo de intervenção humana para geração ou multiplicação de plantas geneticamente modificadas para produzir estruturas reprodutivas estéreis, bem como qualquer forma de manipulação genética que vise à ativação ou desativação de genes relacionados à fertilidade das plantas por indutores químicos externos (art. 6.º, VII, parágrafo único, Lei 11.105/2005).
O tipo subjetivo é composto pelo dolo – consciência e vontade de realizar as condutas incriminadas no tipo objetivo. O delito em epígrafe consuma-se com a utilização, comércio, registro, patente e licença de tecnologias genéticas de restrição do uso. A tentativa é, em princípio, admissível.
Comina-se pena de reclusão, de dois a cinco anos, e multa. O processo e o julgamento desse delito são de competência da Justiça Estadual. A ação penal é pública incondicionada.
Insta salientar, por último a conduta do artigo 29 que proíbe a produção, armazenamento transporte, comercialização, importação ou exportação OGM ou seus derivados, sem autorização ou em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização.
Nesse dispositivo protege-se a biossegurança, em particular o ambiente (segurança ambiental). Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum) e o sujeito passivo é a coletividade.
As condutas incriminadas consistem em produzir (elaborar, criar, gerar, obter) armazenar (guardar, recolher, acumular, estocar), transportar (levar, transferir, carregar algo de um lugar para outro), comercializar (negociar, vender, repassar de forma onerosa), importar (fazer entrar, introduzir em território nacional) ou exportar (mandar, enviar para o exterior) OGM ou seus derivados, sem autorização ou em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização.
Por organismo se entende qualquer ente biológico capaz de se reproduzir ou transferir material genético. Organismo geneticamente modificado (OGM) consiste no organismo cujo material genético tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética (art. 3.º, V, Lei 11.105/2005), enquanto que derivado de OGM é o produto obtido de OGM e que não possua capacidade autônoma de replicação ou que não contenha forma viável de OGM (art. 3.º, VI). É um organismo vivo que tem uma nova combinação genética resultante da aplicação da engenharia genética, mediante a manipulação de sua dotação genética, introduzindo, redistribuindo ou eliminando genes específicos por meio de técnicas de biologia molecular.(7). Trata-se de elemento normativo jurídico do tipo de injusto.
Convém esclarecer que não se inclui na categoria de OGM o resultante de técnicas que impliquem a introdução direta, num organismo, de material hereditário, desde que não envolvam a utilização de moléculas de ADN/ARN recombinante ou OGM, inclusive fecundação in vitro, conjugação, transdução, transformação, indução poliplóide e qualquer outro processo natural (art. 3.º, § 1.º, Lei n. 11.105/2005).
De sua vez, é excluída da categoria de derivado de OGM a substância pura, quimicamente definida, obtida por meio de processos biológicos e que não tenha OGM, proteína heteróloga ou ADN recombinante (art. 3.º, § 2.º, Lei de Biossegurança).
As expressões finais do tipo objetivo – sem autorização ou em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização consubstanciam a existência de norma penal em branco, sendo que os termos sem autorização ou em desacordo são elementos normativos jurídicos que dizem respeito à ausência de justificante, que, presente, torna a ação atípica e lícita.
Tipo subjetivo é composto pelo dolo consciência e vontade de realizar o tipo objetivo.
Ocorre a consumação com a prática de quaisquer das condutas tipificadas. Nas modalidades de transportar e armazenar há crime permanente. A consumação nessas hipóteses, portanto, se protrai no tempo, permitindo a autuação em flagrante delito enquanto perdurar essa situação. A tentativa é, em princípio, admissível, salvo nas condutas de transportar e armazenar.
A pena cominada ao delito é de reclusão, de um a dois anos e multa. A competência para processo e julgamento incumbe aos Juizados Especiais Criminais, por ser considerada infração penal de menor potencial ofensivo – pena máxima não superior a dois anos (art. 2.º, Lei 10.259/2001). Admite-se a suspensão condicional do processo, em razão da pena mínima, igual ou inferior a um ano, abstratamente prevista (art. 89, Lei 9.099/1995). A ação penal é pública incondicionada.
Notas
(1) Para maiores detalhes, PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do ambiente: meio ambiente, patrimônio cultural, ordenação do território e biossegurança (com a análise da Lei 11.105/2005). São Paulo: RT, 2005.
(2) ESCAJEDO SAN EPIFANIO, Leire. Derecho Penal y bioseguridad: los riesgos derivados de organismos modificados genéticamente. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Ed.). Genética y Derecho Penal. Previsiones en el Código Penal español de 1995. Bilbao-Granada: Editorial Comares, 2001, p. 268-269.
(3) Cf. BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Barcelona: Paidós, 1998, p. 25 e ss.
(4) Cf. PERETTI-WATEL, Patrick. La société du risque. Paris: La Découverte, 2001, p.19 e ss.
(5) Assim, BOUAL, Jean-Claude; BRACHET, Philippe. Santé et principe de précaution. Paris: L?Hartmann, 2002, p. 37.
(6) Cf. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. Parte Especial. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2004. v. 2, p. 141.
(7) Cf. BELLO JANEIRO, D. Liberación y comercialización de productos transgénicos. In: HERRERA CAMPOS, Ramón; CAZORLA GONZÁLEZ, María (Ed.). Aspectos legales de la agricultura transgénica. Almería: Universidad de Almería, 2004, p.88.
Luiz Regis Prado é professor titular de Direito Penal e coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Estadual de Maringá.