Observações sobre os princípios da ação penal pública – Da legalidade e da oportunidade

A questão do conteúdo desses princípios se faz necessária diante das últimas mudanças da legislação brasileira, que alteraram profundamente o posicionamento doutrinário e jurisprudencial a respeito de novos institutos que estão se colocando no âmago da ação penal pública.

A respeito dos princípios da ação penal pública, afirmava o douto José Frederico Marques:

“Dois são os princípios políticos que informam, nesse assunto, a atividade persecutória do Ministério Público: o princípio da legalidade( Legalitatsprinzip) e o princípio da oportunidade (Opportnit-tsprinzip). Pelo princípio da legalidade, obrigatória é a propositura da ação penal pelo Ministério Público, tão-só ele tenha notícia do crime e não existam obstáculos que o impeçam de atuar.”

E continuava, explicando:

“De acordo com o princípio da oportunidade, o citado órgão estatal tem a faculdade, e não o dever ou a obrigação jurídica de propor a ação penal, quando cometido um fato delituoso. Essa faculdade se exerce com base em estimativa discricionária da utilidade, sob o ponto de vista do interesse público, da promoção da ação penal.”

Assim bem colocados esses dois princípios políticos da ação penal pública é mister destacar que a matéria nunca foi muito pacífica entre os estudiosos do tema, ainda no passado é preciso relembrar como faz Antonio Scarance Fernandes que Jorge Alberto Romeiro, notável Juiz criminal, em primoroso e completo estudo sobre o tema no direito comparado afirmava em síntese :

“Para que os que admitem o princípio da oportunidade, o exercício da ação penal pelo Ministério Público é de caráter administrativo e, sendo assim, não se pode infundir a este ato a nota de obrigatoriedade.

Elegem como fundamento do direito de punir a utilidade social.

Já para os defensores do princípio da legalidade, tal fundamento repousa no sentimento de justiça. Para eles incumbe ao legislador dizer quando uma ação é ou não danosa, e não ao Ministério Público, cuja opinião está sujeita a erros e influências externas.

Muito respeitado, o processualista penal Tourinho Filho, que a respeito tem vários estudos, num deles é favorável ao princípio da legalidade ou obrigatoriedade, afirmando:

“O princípio da legalidade é o que melhor atende aos interesses do Estado. Dispondo o Ministério Público de elementos mínimos necessários para a propositura da ação penal, deve promovê-la (sem inspirar-se em critérios políticos ou de utilidade social). O contrário implicaria atribuir-lhe um desconchavado poder de indulto”.

Porém estudando a mesma matéria no seu acatado Manual de Processo Penal, observando o princípio da legalidade ou obrigatoridade, ainda face ao advento da Lei 9.099/95 que trata dos Juizados Especiais, anota com felicidade:

“Há discussão a respeito do sistema que melhor consulta aos interesses do Estado: se o da legalidade ou obrigatoriedade, que impõe ao Ministério Público o dever de promover a ação penal, ou o da oportunidade, que lhe permite julgar da conveniência ou não da propositura da ação penal. O princípio da obrigatoriedade se embasa no apotegma ne delicta maneant impunita (os delitos não podem ficar impunes).

E prossegue:

“Nas legislações que permitem ao órgão do Ministério Público julgar da conveniência ou não da propositura da ação penal, a razão de ser dessa faculdade repousa no aforismo mínima non curat pratetor (o Estado não se preocupa com as coisas mínimas).

E ao final conclui:

“Hoje, contudo, esse princípio da legalidade, entre nós, foi amenizado com o instituto da transação de que trata o art. 76 da Lei n.º 9.099/95.

Evidente que o legislador ao definir determinadas condutas como delituais penais não desce, muitas vezes, a minudências, cabendo então a Juiz, considerando, em cada caso concreto, a pouquidade da lesão, deixar o fato sem qualquer punição. Reflitamos sobre o crime de lesão corporal culposa: se da conduta resultar a perda de um membro a lesão é culposa. Também o será de um simples arranhão…. Se o Direito, como já se disse, é o “mínimo ético”, o Direito Penal “solo deve proteger el mínimo de ese mínimo”, na exata observação de Luzon Cuesta…..omissis.

Essa doutrina da intervenção mínima levou várias legislações a adotar medidas alternativas, tal como ocorre com a nossa Lei dos Juizados especiais Criminais.”

Finalmente Antonio Scarance Fernandes no livro já citado, estudando a “Ação Penal e a Justiça Consensual no n.º 21 dessa obra observa: “A ação penal e a Lei 9.099/95: a solução por consenso e a adoção do princípio da obrigatoriedade mitigada ou discricionariedade regrada.”

Donde se vê que a entrada em vigor da Lei 9.099/95 que traz o instituto da transação penal alterou profundamente o antigo sistema da obrigatoriedade, que já era influenciado por José Frederico Marques, Jorge Alberto Romeiro, e principalmente o Des. Euclides Custódio da Silveira, que abertamente pediam o abrandamento desse princípio, sendo que a doutrina e a jurisprudência já admitiam algumas concessões surgindo a existência do denominado princípio da obrigatoriedade mitigada.

Afirmando que o Código de Processo penal adotou o princípio da obrigatoriedade ou legalidade, podemos citar: Vicente de Azevedo, Canuto Mendes de Almeida, H. B. Tornaghi, Magalhães Noronha, Romeu Pires de Campos Barros, Demoro Hamilton, entre outros, todavia, com a advertência que escreveram antes do advento da Lei 9.099/95.

Havia ainda o consenso de que o art. 28 do CPP, ao permitir que o Juiz discordando da opinião do Ministério Público, quando este requeresse o arquivamento do inquérito policial, o remetesse ao Procurador Geral, na verdade estava ele exercendo nitidamente o explícito controle do princípio político da obrigatoriedade da ação penal.

Importante ressaltar que por pressão do movimento das “Mãos limpas” do Poder Judiciário da Itália, o princípio da obrigatoriedade que constava da própria Carta Constitucional desse país teve que ser alterada, para eliminá-lo, a fim de que pudessem avançar na legislação contra o crime organizado, a mesma que nos serve de inspiração.

A presença do princípio da oportunidade na legislação italiana propiciou que importassem o prático sistema processual norte-americano do “plea bargaining” que consiste numa transação entre o Promotor (prosecuting attorney) com o defensor e o acusado, para que este último se declare culpado (plea guilty), e se todos chegarem a um acordo, imputa-se a este último um delito de menor gravidade do que o cometido, e pelo qual será condenado a uma pena convencionada. O juiz neste caso homologa o acordo se ele não infringir regras morais pertinentes.

Nesse mesmo sentido, o Projeto Tipo de Código de Processo Penal para a América latina, no seu artigo 230, faz claras concessões sobre alguns casos em que seria plenamente admissível a aplicação do critério da oportunidade.

No Brasil, com o aprimoramento da defesa do consumidor, surgiram os Códigos que buscaram a conciliação, a mediação, procurando dirimir os conflitos que surgissem nessas relações, atuando Advogados, Promotores, funcionários dos organismos públicos, enfim procedendo à conciliação e a mediação desses conflitos, e de conseqüência enfraquecendo o princípio da indisponibilidade.

E conforme já acentuamos em documento de trabalho, com a adoção da “delação premiada” que surgiu com a Lei 9.034/95 (Crime organizado, no art. 6.º ) e a Lei n.º 9.613/98, (Lavagem de Dinheiro, especialmente no art. 1.º § 5.º) se ensejou a ocasião para que, somado-se as disposições da Lei 9.099/95, o princípio da oportunidade se instalasse, de modo efetivo em nosso sistema criminal, de tal sorte que se torna impossível deixar de reconhecê-lo hoje em plena vigência na legislação brasileira.

Por isso vale a pena transcrever ao douto Frederico Marques, quando dizia:

“(…) o princípio da legalidade e o da oportunidade podem e devem conviver, porque se não é aconselhável adotar-se este último sem limitações, controle ou providências supletivas, de outro lado não cabe impor o primeiro com rigidez e inflexibilidade”.

Também citado por Antonio Scarance Fernandes, o douto Paulo Pinto de Carvalho, em excelente estudo em direito comparado a respeito do Ministério Público, após várias considerações, reconheceu que os dois princípios:

“abrem caminho para a admissão de um critério elástico, uma vez que impossível a adoção de qualquer dos dois sistemas em sua forma pura”.

Finalmente é oportuno transcrever ao magistério de Figueiredo Dias sobre o tema:

“(…) O princípio da legalidade deve continuar a constituir o ponto de partida na modelação do sistema. Só o ponto de partida, porém: bem se compreende que relativamente a certos casos concretos, a promoção e a prossecução obrigatórias do processo penal causem à comunidade jurídica maior dano que vantagem, máxime, atento o pequeno significado da questão para o interesse público, ou conexionado este com dificuldades de prova, inflação do número de processos, pequena probabilidade de executar a condenação, etc. (v.g., relativamente a fatos cometidos no estrangeiro ou por pessoa que não se encontre no país) – e que, em tais casos, se deixe ao MP uma certa margem de discricionariedade no procedimento.”

Ora, o notável processualista português, em sua conclusão a respeito do tema, parece fazer coro a posição de José Frederico Marques, pois deixa bem claro que o sistema da legalidade ou obrigatoriedade, deve continuar a ser, única e exclusivamente o ponto de partida na modelação do sistema, porém com profundas concessões ao regime da oportunidade, conforme se depreende da conclusão de seu trabalho a respeito desse momentoso tema.

Mesmo a despeito desse posicionamento do jurista português, afasta-se o sistema puro da obrigatoriedade, que assim se vê rigorosamente mitigado, e diante das recentes inovações adotadas pelo legislador brasileiro ao sistema da oportunidade e é impossível negar, temas importantes desse sistema estão vigentes no direito processual penal brasileiro.

Assim sendo à vista destas ponderações, mesmo prevalecendo, em vários de seus aspectos o princípio da obrigatoriedade, forçoso é concluir que a melhor solução é um sistema misto, portanto, é correto dizer-se que entre nós vige o princípio da oportunidade e da obrigatoriedade mitigada.

Notas:

1 MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Processual Penal. Rio, Forense, 1980, V, II, pág. 88.

2 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. Ed. RT, São Paulo – SP., 1999, pág.181, citando a ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação penal. Ed. Forense Rio, 1978, pág., 91-94.

3 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 20ed., Ed. Saraiva, S. Paulo – SP., 1998, ( Vol. I, pág. 327.

4 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. Ed. Saraiva. S. Paulo – SP., 2001., pág. 85/86.

5 FERNANDES, Antonio Scarance. Ob. Cit. Pág. 189.

6 MARQUES, José Frederico. Tratado., idem, ibidem, pág. 89.

7 FERNANDES, Antonio Scarance. Ob cit. Pág. 182.

8 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra Ed., 1974, Portugal, Vol.1, p.130-131.,

Nilton Bussi

é advogado e professor da UFPR.

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