O Brasil conhece eleições desde 1532, quando se elegeu o Conselho Municipal da Vila de São Vicente (SP). A tradição de votar, portanto, remonta aos primórdios de nossa História, apesar de havermos conhecido eleições diretas apenas em 1881, por força da Lei Saraiva. Muita coisa mudou entre as eleições municipais regidas pelas Ordenações do Reino, que vigoraram até 1828, e as campanhas “marquetizadas” deste ano.
Houve tempo em que não votavam escravos, mulheres, índios e assalariados. Política era coisa de rico. (Será que não continua assim?) Passamos por pelouros, bolas de cera onde eram colocados os votos, entramos nas fases das urnas de madeira, de ferro e de lona, até chegarmos às atuais urnas eletrônicas. Cacarecos do passado resistem, como o voto de cabresto, que continua a engordar currais eleitorais de alguns grotões. Entre 20% e 25% da população eleitoral de 116 milhões ainda recebem influência do mandonismo regional. Devemos reconhecer, porém, que mesmo lá não há vez para a tirada do coronel ante a insistência do eleitor ansioso para descobrir o nome do candidato no envelope fechado que recebeu, prontinho para ser depositado na urna: “Você está me querendo me comprometer, seu besta, não sabe que o voto é secreto?”
O que ainda não se faz fortemente presente na cultura dos fundões é o pensamento crítico que eleitores de centros maiores têm adquirido, em função de promessas não cumpridas por políticos. É a cobrança, sem nenhum compromisso com a lhaneza, que permite a uma vendedora de loja, em São Paulo, perguntar a Paulo Maluf por que não troca o slogan de sua campanha deste ano, “o bom prefeito está voltando” para o famoso “rouba, mas faz”. O gesto determinado da eleitora denota um dos traços mais avançados da nova cultura que se espalha pelo território, em contraponto à cultura de passiva aceitação da verborragia dos políticos. Trata-se do conceito de autogestão técnica, pela qual os eleitores sabem o que exigir de candidatos e como enxergam seus perfis. Essa atitude balizará o comportamento de parcelas significativas do eleitorado.
Que outros aspectos podem ser considerados relevantes no processo que se estenderá até o segundo turno das eleições deste ano? O refúgio dos eleitores em grupos de referência será outra posição a ganhar intensidade. Como a nossa democracia representativa não tem dado respostas suficientes às demandas dos grupos, estes procuram novos escudos. Esta tendência tem se acentuado desde 1984, quando milhões de pessoas foram às ruas reivindicar o direito de eleger o presidente da República. O intento foi frustrado. Só pelo voto indireto, Tancredo Neves ganhou de Maluf (o mesmo que agora sorri diante da saia-justa da vendedora de loja, fazendo de contas que o “rouba, mas faz” nada tem que ver com ele; o mesmo que invade o CTI de um hospital para pedir votos a paciente em estado gravíssimo). Nos últimos 20 anos, as massas têm perdido a motivação, fugindo das ruas para dar lugar a movimentos específicos, na esteira das ações de resultados imediatos. Ingressamos no ciclo da funcionalidade e convivemos com atores cada vez menos interessados em pensar a política como missão. Maior competitividade entre candidatos, menor contraste entre partidos, maior distância entre povo e universo político, predomínio de demandas da micropolítica e maior ingerência de grupos privados no domínio político se apresentam como frutos da estandardização de padrões e costumes.
Dentro deste figurino se desenvolve a campanha municipal. A fulanização ocupa espaços centrais, mostrando que o País se torna celeremente um território político de proprietários. O ideário sai de partidos e entra no corpo de entidades não governamentais. Aliás, a principal alavanca das campanhas é a mobilização de grupos localizados, integrados e conscientes. Antigamente, o foco era a massa dispersa, difusa e amorfa. Partidos só valem para somar espaços na mídia eleitoral. A “prostituição” partidária chega ao clímax, com a maior salada de siglas já produzida em todos os tempos. Para completar o menu, 400 mil candidatos a vereador e a prefeito parecem moldados em forno de clonagem, tão grande a semelhança da gagueira mental.
Não se pode dizer que estamos retrocedendo. Eleições fazem bem à democracia, mesmo sabendo que a institucionalização do País não depende apenas de sufrágio de dois em dois anos. Depende também daquilo que o embaixador J. O. de Meira Penna chama de “míngua em nosso caráter das virtudes racionais de operosidade, organização, poupança, seriedade, obediência à lei, disciplina moral e boa consciência econômica.” Apesar de tudo, as eleições apontam para um voto que desborda, devagarzinho, do coração para ingressar na esfera consciente do hemisfério cerebral.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.