O verbo e o sonho

O ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, que depois de quatro tentativas tornou-se presidente da República Federativa do Brasil, creio que o fato é inédito em qualquer outro país, a despeito do grande número de conselheiros à sua disposição, persiste em demonstrar publicamente algumas das atitudes corriqueiras de seus tempos de iniciação nas lutas sindicais, em que “companheiro” era não só o termo mais freqüente entre os participantes, mas o indicativo mais fiel de seu estado de espírito.

Foi nesse cadinho que Lula forjou-se como indivíduo, projetou uma carreira profissional simples mas competente, até ser atraído irremediavelmente pelo fascínio da política sindical, tornando-se líder autêntico da massa de trabalhadores metalúrgicos da região do ABC paulista.

Do sindicato de São Bernardo do Campo, mais precisamente do pequeno estádio de futebol da Vila Euclides, onde se realizavam as assembléias dos trabalhadores nas primeiras greves que irromperam no período dos governos militares, Lula emergiu para a escalada que o levaria à presidência cerca de três décadas depois, não sem antes conhecer a amarga solidão do cárcere, castigo dado aos transgressores dos interditos políticos, como já havia ocorrido com Prestes, Bezerra, Graciliano, Marighela e tantos outros.

Ungido pela maioria absoluta do eleitorado no memorável pleito em que passou olimpicamente por adversários da estirpe de José Serra e Ciro Gomes, apenas para citar dois, diga-se de passagem, sem sofrer em nenhum momento a menor ameaça de ver sua enorme vantagem declinar, Lula envergou a faixa presidencial e fez de sua posse uma grandiosa festa popular que teve de tudo. Até a monumental gafe cometida pelo cerimonial com os chefes de governo estrangeiros, confinados por longo tempo numa espécie de arquibancada, enquanto o povão e “seu” presidente se esbaldavam.

Forjado na vida sindical, acostumado à falta de cerimônia com que todo mundo aí se trata, Lula inaugurou na presidência o oposto do ritual que José Sarney um dia definiu como liturgia do cargo. Certamente deslumbrado com o fausto que passou a envolvê-lo, a cortesia protocolar que o afaga, os ademanes e o frufru daquela gente toda que cerca os poderosos, as primeiras semanas do novo presidente foram pródigas em discursos, quase sempre de improviso, nos quais Lula deitou falação sobre tudo e todos.

Não faltaram ocasiões propícias para as indefectíveis fotos que, no dia seguinte, estiveram nas capas de todos os jornais importantes do País e em muitos do exterior. Afinal, essa é uma recorrência tão automática quanto o mais legítimo cronômetro suíço: Lula portando cocar indígena, chapéu de vaqueiro, a camisa do timão, tocando violino ou regendo a orquestra.

Ainda faltam as fotos mostrando o presidente ao entrar em campo de verdade com a camisa da seleção, pilotando um jato da FAB, saltando de pára-quedas e… suprema glória! velejando em cinematográfico barco pertencente a qualquer um dos magnatas que costumam fazer ponto nos clubes que enfeitam a badalada orla que vai de Cabo Frio ao Guarujá.

Como não foram poucos os assessores do presidente a lerem o livro, hoje meio esquecido, de Roger-Gerard Schwartzenberg (O estado espetáculo), publicado no Brasil no final dos anos 70, o presidente que desde a campanha apresentara-se como hábil manipulador das técnicas do marketing político e das relações públicas, incentivado pelo publicitário Duda Mendonça, continua tirando proveito da parafernália oferecida pela propaganda, sem que necessariamente seja preciso deixar de ser repetitivo. Ora, essas técnicas foram utilizadas ad nausean por John Kennedy, Giscard d?Estaing, Ronald Reagan, Carlos Menem, Bill Clinton e, atualmente, por George Bush e Tony Blair. Pouca coisa mudou desde então.

Na verdade, a necessidade foi sentida pelos dirigentes do Partido Democrata, cujo candidato (Roosevelt) ganhou a primeira eleição da década de 30 a cavaleiro de pujante esquema de publicidade política. No exercício do mandato, o presidente contava com “pelo menos 146 publicitários em regime de tempo integral e outros 124 em regime de tempo parcial”, diz Schwartzenberg citando fonte ligada à Universidade John Hopkins, a quem se deve dar crédito apesar do exagero dos números. A razão estaria num hipotético desemprego em massa no mercado publicitário norte-americano, que o governo Roosevelt se apressou em socorrer?

Galhofas à parte, os brasileiros podem ter mais um motivo de justo orgulho, ao considerar que na atividade que Roosevelt demandava o concurso de quase 300 publicitários, Lula faz sozinho com Duda Mendonça!

Um dos gestos marcantes do presidente é o afago que faz nas bochechas de alguns dos circunstantes. Nem todos, é verdade. Isso lembra os dirigentes do sindicalismo argentino de algumas décadas, que sequer apertavam as mãos estendidas, limitando-se a dar carinhosos tapinhas no rosto ou piparotes no cocuruto de quem estivesse por perto. Mais tarde, essa espécie de marca registrada dos bons e velhos pelegos passou a ser imitada abertamente por gente do show business, jogadores de futebol e, ao infinito, pelas pessoas comuns.

Mesmo que não se pretenda ter como inteiramente inadequada a definição feita por Sarney, que a Presidência da República contém uma certa carga litúrgica (de cerimonial seria melhor), também é impossível concordar com certas liberalidades a que se entrega o presidente atual.

Schwartzenberg escreveu, é óbvio, não especificamente pensando em Lula, mas suas palavras em geral atribuídas aos que ele próprio denomina star system nos estimulam a pensar, na medida que o “dirigente supremo confunde facilmente o verbo e a ação, as palavras e as coisas. Ele distribui sobretudo o verbo e o sonho. Absorve-se nessa função encantatória, ao ir de um microfone para uma tribuna, de uma reunião para uma viagem oficial, de um congresso para uma conferência internacional”.

As tarefas diárias de um presidente, a quem cabe acompanhar tudo cobrando agilidade e resultados positivos de uma equipe multidisciplinar, heterogênea pela formação cultural, e de resto movida por certo grau de vaidade, orgulho e gosto particular pelos refletores, quando não pela intriga, não são das mais leves.

No caso de Lula, o resultado esperado é o desprazer causado por ilustres avestruzes do PFL e do PSDB, que nos oito anos do consulado de FHC pouco ou nada realizaram a favor do País, ao aparecerem na mídia para reclamar benefícios sociais que eles próprios, literalmente, negaram aos mais necessitados. Péssimo atendimento na saúde e educação, desemprego, violência, drogas, prostituição, corrupção e falta de moradia para os pobres (problemas já sentidos pela classe média) não passaram a ser novidade no Brasil por causa da eleição de Lula. É preciso que aqueles senhores olhem mais para o espelho, mas não cometam a leviandade de culpar o vidro que lhes reflete a imagem pela lamentável realidade de terem a cara errada.

A sensibilidade social do presidente, sua própria história de vida, as privações que ele mesmo e seus conterrâneos passaram o fazem credor da esperança do povo sofrido. Décadas se passaram e o desleixo das autoridades com a administração pública mostra hoje um quadro que se aproxima do caos.

Não temo afirmar que Schwartzenberg aqui estaria retratando um ou outro presidente que já se foi: “Sempre em representação, a esse manequim ambulante do Estado já não sombram nem tempo nem gosto para agir, tão ocupado vive ele a solicitar a bajulação pública ou a adorar sua própria imagem. Ora, o líder que se deixa colher na armadilha de sua propaganda acaba acreditando na realidade do falso retrato proposto à admiração das multidões, e mergulha numa comovida autocontemplação”.

Seria de extremo reacionarismo e crueldade obrigar Lula a vestir o mesmo molde que facilmente identificamos em mandatários recentes. O que devemos fazer como homens e mulheres conscientes de sua responsabilidade social é fazer chegar ao presidente da República a preocupação que abarca toda a comunhão nacional. Não há mais como postergar as providências que contribuam para a melhoria efetiva e imediata da maioria da população. Segundo o pensamento culminante da Capistrano de Abreu, “revogam-se as disposições em contrário”.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

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