O uso do chapéu na casa do povo

Um episódio judiciário de extrema originalidade foi revelado na semana com a decisão do Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, indeferindo o pedido liminar do Deputado Edigar Mão Branca, do Partido Verde da Bahia. O parlamentar pretendia, através do Mandado de Segurança (n.º 26557) obter o direito de usar, nas sessões da Câmara dos Deputados, o chapéu de couro que constitui parte inseparável de seu vestuário. Segundo o noticiário da imprensa, o impetrante argumentou que a proibição determinada pelo presidente Arlindo Chinaglia (PT-SP), o impediria de ?exercer livremente o seu mandato? além de restringir ?os seus direitos de ir e vir e de se expressar?. O Deputado Chinaglia sustentou que a demanda tem uma índole eminentemente política cuja análise e decisão competem apenas à Casa Legislativa?. (Dos jornais).

Em seu despacho o vice-Presidente do STF entendeu que ?em juízo sumário sobre a questão, não vislumbro direito fundamental do impetrante, seja a liberdade de ir e vir, seja à liberdade de expressão, cuja possível violação signifique, neste momento processual, uma decisão cautelar?. (http://www.stf. gov.br/noticias /imprensa/ultimas).

O assunto tem a simplicidade aparente, solucionável pelas normas domésticas? Ou o debate ultrapassa os limites traçados para as questões interna corporis? Existe direito líquido e certo, requisito indispensável para o conhecimento do writ of mandamus, ou a lide é temerária? A petição tem possibilidade jurídica de uma decisão de mérito? Ou deveria ser indeferida desde logo?

O Regimento Interno menciona a obrigatoriedade do uso de traje passeio completo nas dependências da casa. Mas o chapéu não é um complemento do traje?

Nos anos 50, o Deputado Federal Barreto Pinto foi flagrado de casaca e cueca graças à indiscrição da famosa dupla da revista O Cruzeiro, Jean Manzon e David Nasser. Mas ele não estava no recinto da Câmara e embora jurasse que estava apenas se vestindo foi contestado pelos repórteres que afirmaram ter ele posado. Do escândalo nacional resultou a cassação do mandato por falta de decoro parlamentar.

Mas a imagem do chapéu nordestino e o seu uso pelo parlamentar baiano podem ser associados à falta de recato ou decência? Especialmente num cenário por onde trafegam livre e ostensivamente mensaleiros, sangues-sugas, anões do orçamento e outras espécies de uma imensa e interminável fauna de apóstolos da moral de fronteira e fundamentalistas da corrupção?

Abre-se, portanto, um generoso espaço de reflexão sobre o tema levado à maior corte judiciária do país. A começar pela definição e importância do chapéu.

Para os dicionários comuns o chapéu é a peça do vestuário masculino e feminino destinada a cobrir a cabeça e usada normalmente para sair. É feito, em princípio, de uma copa enformada ou não e de aba mais ou menos larga, podendo ser de diferentes materiais e assumir diversos aspectos. (Houaiss).

Mas essa sumária definição não esgota tudo o quanto sugere a história e o simbolismo do chapéu.

Para o imortal Machado de Assis (1839-1909), o chapéu ?é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab eterno? (?História Sem Data? 903).(1)

O uso de indumentos para cobrir a cabeça é muito comum na religião judaica. Geralmente, os judeus mais ortodoxos utilizam chapéus no seu dia a dia. Nas cerimônias religiosas, usa-se o ?kipá? (?cúpula, abóbada ou arco?), também chamado de ?Yarmulke? (palavra ídishe, que significa ?boina?). Tal acessório é um chapéu em forma de circunferência, e possui vários significados, dentre os quais destaco os dois principais: segundo a parte mais ?autoritária? da religião, seria um instrumento de temor a Deus, e seu uso demonstraria que, em ocasiões solenes e de devoção, devemos temer Deus. Prefiro ficar com a concepção mais ?humana? de seu uso, a qual diz que é utilizado para que Deus nos olhe de maneira igual, isto é, como Deus está nos olhando ?de cima?, e todos têm o mesmo aparato na cabeça, nesta hora não há diferença social, de raça, idade, cor, etc. Assim, sua utilização seria a demonstração de que todos são iguais perante Deus.

Em seu Dicionário de Símbolos, Jean Chevalier observa que o Mestre, na assembléia maçônica, jamais tira o chapéu: ele participa dos trabalhos com a cabeça coberta, como sinal de suas prerrogativas e de sua superioridade (BOUM, 278). Quer esse costume seja ou não mantido por razões práticas, isso em nada afeta o simbolismo do chapéu. O papel desempenhado pelo chapéu parece corresponder ao da coroa, signo do poder, da soberania, sobretudo quando se tratava, antigamente, de um tricórnio (…) O chapéu, em sua qualidade de peça que cobre a cabeça do chefe (fr. Couvre-chef = ?chapéu?, trad. Literal: cobre-cabeça), simboliza também a cabeça e o pensamento. É, ainda, símbolo de identificação; como tal, assume toda a sua relevância no romance de Meyrink, O Golem: o herói tem os pensamentos e empreende os projetos da pessoa cujo chapéu está usando. Mudar de chapéu é mudar de idéias, ter uma outra visão do mundo (Jung). ?Usar o chapéu? significa, em francês coloquial (porter le chapeau), assumir uma responsabilidade, mesmo por uma ação que não se tenha cometido.(2)

Para Mão Branca, o chapéu é um acessório importante na vestimenta para identificar a personalidade de uma determinada pessoa por meio de suas diferentes formas, materiais e cores. ?O uso do chapéu de couro está diretamente relacionado com a bravura do vaqueiro nordestino que, para o seu trabalho, utiliza o chapéu como proteção do sol e dos golpes dos espinhos e dos galhos da caatinga e, às vezes, utiliza a sua copa para beber água ou comer?. (Dos jornais).

Câmara Cascudo (1898-1986), o historiador, antropólogo, advogado e jornalista, nascido em Natal e vivendo a cultura popular do folclore, ensina que o chapéu ?representa a cultura humana. Representa a cabeça, sede do juízo, do raciocínio, da vontade. Outrora, como toda gente não dispensava o chapéu, sair sem ele dizia-se sem cabeça, andar sem a cabeça. Perdeu a cabeça? Perdi minha cabeça! eram frases alusivas ao uso do chapéu. Tollenare, que residiu no Recife de 1816 a princípios de 1817, narra a história de um curandeiro que, não podendo ir pessoalmente atender uma mulher que fora mordida por uma cobra e já quase agonizava, enviou o seu chapéu. Puseram-no na cabeça da moribunda e esta escapou e viveu (Antologia do Folclore Brasileiro, 72).(3)

Nos ambientes utilizados pelas corporações (Judiciário, Ministério Público, Advocacia) pode-se dizer que a toga e a beca são de uso obrigatório em cerimônias oficiais e para o exercício da atividade funcional durante os julgamentos. Os Regimentos Internos dos tribunais dispõem, especificamente, sobre o traje formal. Assim, os ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça usam vestes talares nas sessões solenes e capas nas sessões ordinárias ou extraordinárias (STF, art. 16, parág. ún. e STJ. art. 29) Os advogados devem usar beca quando ocuparem a tribuna (RI, STJ, art. 151, § 3.º). Os secretários dos órgãos julgadores, o Diretor-Geral, qualquer diretor, chefe ou servidor da Secretaria, que tiverem de servir nas sessões do Plenário, da Corte Especial, Seção ou Turma, ou a elas comparecer a serviço, usarão capa e vestuário condigno (RI, STJ, art. 321). Também o Tribunal Superior do Trabalho (RI-TST, art. 10) e o Superior Tribunal Militar (RI-STM, art. 10), adotam o mesmo e antigo costume, assim como os tribunais estaduais e federais. A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n.º 8.625/93, art. 41, X) e o Estatuto da OAB e da Advocacia (Lei n.º 8.906/94, art. 7.º, XVIII) estabelecem como prerrogativa o uso das vestes talares. O Provimento n.º 08/64 da OAB dispõe sobre o modelo das becas.

Mas pode-se afirmar que rígidas normas de vestuário para as corporações profissionais, necessárias para destacar a identidade funcional, como a farda para os militares, devem ser adotadas nos Parlamentos do país? Os detalhes rigorosos de confecção e uso da vestimenta podem ser impostos nas Casas do Povo (Congresso Nacional, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais)?

A resposta é, obviamente, negativa. O Parlamento é o cenário de representação popular com as identidades e diversidades culturais peculiares das regiões brasileiras. Os parlamentares devem incorporar as tradições dos núcleos populares que lhes proporcionam legitimação, quanto ao mandato, e identidade quanto aos hábitos e costumes. Bem a propósito, a Constituição declara que o Estado ?garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais?, bem como ?protegerá as manifestações de culturas populares? (art. 215 e § 1.º).

A qualidade estética e a função mística do chapéu vão para muito além de uma definição restrita a cobrir uma parte do corpo. Essas virtudes ganham excepcional dimensão no imaginário popular que faz, também com esse complemento, a imortalidade de personagens do cinema como Rick Blaine, Ilsa Lunt  e Victor Laszlo.

Assim eram insinuantes, lindos e indispensáveis – os chapéus usados por Humphrey Bogart, Ingrid Bergman e Paul Henreid, nas últimas cenas do filme Casablanca.  

Esse mesmo. Que ainda conserva em nossos ouvidos e em nossos corações os acordes de As time goes by.  

Notas:

(1)  Em andrade, Gentil de. Pensamentos e reflexões de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira S.A., 1990, p. 76

(2)  chevalier, Jean. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números), trad. Vera da Costa e Silva [et al.]. 3.ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990, p. 232. (Os destaques em itálico do original).

(3)  Câmara Cascudo, Luís. Dicionário do folclore brasileiro. 3.ª ed. ver. e aum. Brasília: Instituto Nacional do Livro. 1972. p. 249

René Ariel Dotti é professor titular de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná; Vice-Presidente do Conselho Científico da Associação Internacional de Direito Penal (Paris); Ex-Secretário de Estado da Cultura do Paraná; Sócio Benemérito do Instituto dos Advogados do Paraná e detentor da Medalha Vieira Netto, outorgada pela OAB-PR.

A pesquisa sobre textos de uso das vestes talares foi feita pela Advogada Vanessa Scheremeta.

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