Todo o planeta, estarrecido, comoveu-se com a tragédia asiática causada, primeiro, por um terremoto (de 9 graus na escala Richter), e, depois, por um maremoto, no Oceano Índico, que produziu "tsunamis" (ondas gigantes) de até 12 metros de altura. A devastação foi violenta e rápida. Mais de 100.000 pessoas mortas. Tudo teve origem em Sumatra, mas em menos de três horas os "tsunamis" já atingiam Sri Lanka e a Índia. Seis horas depois ainda iria matar centenas de pessoas na Somália.
Muitos países já foram atingidos por terremotos (Tangshan-China, 1979, 250.000 mortos; Gansu-China, 1920, 200.000 mortos; Kanto-Japão, 143.000 mortos, Messina-Itália,1908, 70.000 mortos etc.) e maremotos. No Brasil, entretanto, nada disso existe. A chance de termos terremotos gigantes ou maremotos é muito remota. Estamos no centro da placa tectônica Sul-americana. Vivemos sobre solo estabilizado. Nosso problema, portanto, não é a natureza.
Os "tsunamis" desta terra são outros. Assumiram a forma de uma "guerra civil", que mata anualmente a mesma quantidade de gente que foi consumida pelos "tsunamis" asiáticos em poucas horas. A diferença é que os "tsunamis" causados por um terremoto devastam uma só vez. Os nossos arrasam anualmente, mensalmente, diariamente. A guerra civil brasileira já conta com cinco séculos e não tem data certa para acabar (se é que, em algum dia, vai acabar) (cf. Luís Mir, Guerra civil, São Paulo: Geração Editorial, 2004).
Até hoje uma grande parcela da nossa população não foi aceita. Aqui está o problema. A discriminação racial e étnica é gritante. Nossos colonizadores iniciaram essa separação. Europeu é europeu e índio é índio; índios, negros, mestiços e europeus degredados: raças inferiores, não podem ser incluídas no Estado nem na sociedade dominante. Nem o Império, nem a República, nem o Estado contemporâneo foi capaz de suavizar nosso apartheid (social e econômico). Mais de 100.000 pessoas são mortas todo ano. Mas nenhuma reação séria oferecemos, salvo quando matam alguém "especial" da nossa "tribo". Nesse caso os jornais fazem algum estardalhaço, a televisão fatura mais um pouco de audiência e de dinheiro, em seguida algum deputado apresenta um projeto de lei para "solucionar" o assunto, e tudo logo passa.
Enquanto as pessoas vão morrendo, enquanto nossa guerra civil vai tendo seu curso "normal", vamos aprimorando nossas técnicas de exclusão, de rejeição. A começar pela arquitetura. Centro é centro, favela é favela. Condomínio fechado é condomínio fechado, rua é rua. Mas até parece que nós nunca temos que utilizar a rua! Até parece que não existe transporte da favela para o centro!
Fixando o favelado no seu gueto, sem lhe dar qualquer chance de civilização ou socialização, sem escola, saúde, educação etc., conseguimos nos livrar dele por mais ou menos uns 12 anos. Durante esse período ele não nos perturba, ou melhor, perturba pouco, quase não vem para o centro e, quando vem, no princípio da sua carreira de violência, é só para nos pedir dinheiro nas esquinas. Nota-se claramente que ainda não conquistou as técnicas de ataque da guerra civil. Ainda não sabe usar nenhuma arma. Seu processo de subculturalização, entretanto, continua sem cessar. Seus valores são outros. A vida não lhe significa quase nada. E quem não ama a própria vida, pouca relevância dá para a vida alheia. Quando aquele inocente pedinte termina sua fase de preparação, transforma-se num guerreiro metropolitano. Matar ou morrer é o seu destino!
Assim preparamos os guerreiros da nossa guerra civil. São os nossos perenes "inimigos". Mecanismos de mediação de conflitos não existem. O Estado está totalmente afastado das favelas. A sociedade pouco se sensibiliza com tudo isso. Cada um para si e Deus para todos! Ela tem consciência de que paga um preço muito alto: mas a segregação dos inferiores está na sua genética. É valor que ela cultiva muito mais que a inclusão de todos no processo social e econômico. Uma coisa, entretanto, é certa: quem não abre mão do apartheid tem um preço a pagar!
Nossos "tsunamis", como se vê, não brotam do fundo do mar: provêm da nossa elite dominante, dos nossos preconceitos, da nossa suposta superioridade racial, da nossa não integração. Não somos uma "nação" (que comunga valores idênticos, que respeita minorias etc.). O Estado brasileiro, sob essa perspectiva, é uma "farsa".
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e diretor-presidente do IELF – PRO OMNIS: Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina – Com a Pro Omnis o IELF ficou maior e melhor – www.proomnis.com.br.
