O Tribunal do Júri foi implantado no Brasil, por força da Lei de 16 de junho de 1822, competindo-lhe tão somente o julgamento dos delitos de imprensa.
Historicamente, porém, essa forma de tribunal popular remonta aos judices juratis, do direito romano, aos diskatas, dos gregos ou aos centeni comites, dos germanos.
No início da Era Cristã, em Jerusalém julgava o Sinédrio(1), supremo tribunal judaico. Era constituído de 71 membros, formado pelo sumo sacerdote, seu presidente, uma câmara religiosa de 23 sacerdotes, uma câmara legal, de 23 escribas, e uma câmara popular, de 23 anciãos. Foi ali julgado e condenado Jesus Cristo de Nazareth, em sessão presidida por Caifás, interrogado por Anás e sentenciado por Pôncio Pilatos, no mais célebre julgamento popular dos tempos(2). Julgamento corrompido, viciado e distorcido, embora sob a égide da legislação judaica da época, tida como um verdadeiro e magnífico sistema de justiça criminal.
Na sua forma moderna, o Júri foi criado na Inglaterra, depois do IV Concílio de Latrão(3), com conotação religiosa e mística. Era organizado com doze jurados, número correspondente ao dos apóstolos de Cristo. Introduziu-se na França, com a revolução burguesa, diante da forte aversão à classe dos magistrados, historicamente vinculada à nobreza e artífice de toda sorte de arbitrariedades. Dali, disseminou-se por todos os continentes.
Em nosso país, sucessivas Constituições Federais, leis ordinárias e decretos-lei deram-no diferentes formas. A Carta Imperial de 25 de março de 1824 atribuiu-lhe competência para todas as infrações penais, além de determinados casos civis. A CF 1946, colocou a instituição entre as garantias individuais, restabelecendo a soberania dos veredictos, que houvera sido abolida pelo decreto-lei n$. 167, de 05/01/38. A Lei 263/48 estabeleceu que o tempo destinado à acusação e à defesa, que era de uma hora e meia, passaria para três horas, e mais meia hora para a réplica e meia hora para a tréplica. A CF de 1967, seguiu na mesma esteira. A Emenda Constitucional n.º 1, de 17/10/69 omitiu a sua soberania. A Lei 5.941/73 (Lei Fleury) dispôs que o réu primário e de bons antecedentes poderia permanecer em liberdade, até o julgamento popular. Reduziu o tempo dos debates em plenário para duas horas, mantendo a meia hora para a réplica e tréplica.
Finalmente, a Constituição vigente (5/10/88), prescreve:
“Art. 5.º omissis.
§ XXVIII – É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a plenitude de defesa;
o sigilo das votações;
a soberania dos veredictos;
a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”
Reparos há que serem feitos, contudo, a respeito da não aplicabilidade, em sua plenitude, destes dispositivos constitucionais, no julgamento popular, ainda refém de velhos e rançosos hábitos e costumes.
A plenitude de defesa
A plenitude de defesa, na sessão do Júri, deve iniciar-se com a composição do conselho de sentença, a qual deve ser heterogênea, contando com representantes dos mais diversos seguimentos da sociedade, afastando a singularidade de determinada classe social, observando-se um mais dinâmico revezamento entre os jurados na sessões seguidas. É inaceitável a formação de um corpo de jurados que funciona por cinco, dez, vinte ou trinta anos, tornando-se mais familiar no ambiente, do que o próprio juiz presidente, o promotor de justiça ou o advogado de defesa e identificados, alguns, como condenadores, outros como absolventes. Tal exigência deve ser levada em consideração em razão de que a maioria dos jurados, invariavelmente, decide em atendimento a critérios e valores estritamente particulares, de cunho pessoal, íntimo, até sob a influência da empatia por esta ou aquela parte entre os operadores do direito, descuidando-se das nuanças técnico-jurídicas do caso.
Afronta a plenitude de defesa, permanecer o acusado inerte no banco dos réus, figura espúria que não aparece na legislação, mas, mantida por alguns juizes, em plenários de julgamento, em pleno século XXI. Juizes há, e muitos, que já aboliram tal prática violenta e constrangedora, permitindo que o acusado permaneça na tribuna, ao lado do seu defensor, eis que a presunção de inocência deve ser mantida até o veredicto condenatório. A figura do acusado, no banco dos réus, faz já dele, um meio condenado. Da mesma forma, permanecer ele, algemado durante a sessão de julgamento.
A própria disposição do cenário da sessão de julgamento, influi e distorce a decisão final, quando o corpo de jurados é colocado ao lado do órgão acusador e lá, do outro lado, o acusado e seus defensores, como fantasma laica a regurgitar o julgamento inquisitorial e vexatório.
O sigilo das votações
O sigilo das votações compreende o ato de votar, não os atos preparatórios para a votação.
Não diz a lei maior que o corpo de jurados deva recolher-se a uma sala secreta para sufragar o seu voto, ou o plenário seja evacuado, pois os jurados não discutem e não podem discutir as teses defendidas em plenário. O que diz a Constituição Federal é que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.
Sigilo de votação não quer dizer votação secreta.
A soberania dos veredictos
Não é absoluta a soberania dos veredictos, pois é admissível o recurso de apelação, sob o fundamento de decisão manifestamente contrária à prova dos autos. Dando o Tribunal provimento ao recurso, mando a novo julgamento e o conselho de sentença pode decidir de forma contrária.
Trata-se, pois, de soberania relativa; não absoluta.
A competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida
Nem todos os crimes dolosos contra a vida vão a júri, como crimes não dolosos contra a vida, podem ir à júri.
O auto-aborto, o aborto consentido pela gestante ou o aborto provocado por terceiro, sem o consentimento, descritos nos artigos 124 e 126 do Código Penal, embora sujeitos à competência do Tribunal do Júri, em função da lei 9.099/95, podem não chegar lá.
Nos termos do art. 89 da referida lei, nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, MP, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por 2 (dois) e 4 (quatro) anos, nas condições nela contidas. Expirado o prazo, o juiz declarará extinta a punibilidade.
Enquanto isto, os crimes comuns praticados pelo Presidente e vice-presidente da República, membros do Congresso Nacional, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador Geral da República, Ministros de Estado, membros dos Tribunais Superiores, do Tribunal de Contas da União, chefes de missão diplomática de caráter permanente, serão julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Governadores de Estado e do Distrito Federal, membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos municípios e do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais, serão julgados pelo Superior Tribunal de Justiça. Crimes comuns de Prefeitos Municipais serão julgados pelo Tribunal de Justiça do seu Estado.
Por conexão, outros ilícitos penais podem ser julgados pelo Tribunal Popular.
A competência, pois, também não é absoluta; é relativa.
Mesmo maculado no seu preceito constitucional, prevalece o conceito segundo o qual um grupo de cidadãos honrados, na pluralidade de suas idéias, pode apreciar melhor um delito, e sobre ele se pronunciar.
Notas
(1) O termo Sinédrio – em grego “Synedrion” – que a palavra “consistório” traduz, designava uma Assembléia, um Senado, uma “boule”, como se dizia em Atenas, ou se quiser, uma Comissão permanente que residia em Jerusalém. A tradição judáica fazia-o remontar a Moisés.
(2) O Cristo devia ser julgado formalmente perante o Sinédrio, mas, Anás, sogro de Caifás, O submeteu a um julgamento preliminar. Sob o governo romano, o Sinédrio não podia executar a sentença de morte. Só podia interrogar um prisioneiro, e dar a sentença para ser ratificada pelas autoridades romanas. Era, portanto, preciso apresentar contra Cristo, acusações que fossem consideradas criminosas pelos romanos. Também era preciso uma acusação que O condenasse aos olhos dos judeus. A sentença encontra-se arquivada, em exposição permanente, no Museu da Espanha.
(3) O IV Concílio de Latrão foi convocado pelo papa Inocêncio III, através da Bula Vineam Domini Sabaoth, de 10 de abril de 1213.
Júlio Militão
é advogado criminalista e membro da Academia de Cultura de Curitiba.