(O caso da mãe-crecheira que trabalha na sua própria casa)
Luiz Eduardo Gunther e Cristina Maria Navarro Zornig
1. Introdução
Para alguém ser considerado empregado, nos moldes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), deve ser pessoa física, prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário (art. 3.º, caput). Empregador, para a CLT, é considerado a empresa, individual, ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços (art. 2.º, caput).
Lei especial define o empregado doméstico, dizendo tratar-se daquele “que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas” (art. 1.º da Lei n.º 5.859/72).
Segundo o Decreto n.º 71.885/73, empregador doméstico é “a pessoa ou família que admita a seu serviço empregado doméstico” (art. 3.º, II).
2. As disposições celetárias e o doméstico
A CLT dispõe que seus preceitos, em princípio, não se aplicam aos empregados domésticos, “salvo quando for, em cada caso, expressamente determinado em contrário” (art. 7.º, caput).
Também a alínea “a” do art. 7.º da CLT conceitua os empregados domésticos, considerando-os, de um modo geral, com aqueles que prestam serviços de natureza não econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas.
3. O trabalho em domicílio e sua aplicação ao doméstico
Diz o art. 6.º da CLT: “não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador e o executado no domicílio do empregado, desde que esteja caracterizada a relação de emprego”.
Salienta Ribeiro de Vilhena, quanto à perspectiva do âmbito: “o trabalho a domicílio é extrovertido e se dirige à empresa credora e no trabalho doméstico ele é introjetado e se volta sempre para a usufruição pessoal ou familiar, ainda que prestado em áreas dependentes de residências ou a elas contíguas ou circunvizinhas, mas em função de sua preservação ou vigilância”.
Traz em apoio ao seu argumento um julgado que reconhece como doméstico trabalhador que prestou serviços como segurança dos familiares do empresário: TRT-3.ª Reg. 2.ª T. RO-10.032/96, Rel. Juíza Alice Monteiro de Barros.
4. A mãe-crecheira pode ser considerada doméstica?
Levando-se à risca a impossibilidade jurídica de reconhecimento do trabalho em domicílio nas relações domésticas, a resposta seria negativa. Ocorre que se torna necessário examinar as peculiaridades de cada caso concreto.
Assim, por exemplo, se a situação poderia caracterizar, em tese, prestação de serviços de forma subordinada, mas fica caracterizada a ausência de finalidade lucrativa do serviço prestado, parece possível reconhecer-se o trabalho doméstico.
Se uma mãe entrega seu filho pequeno a outra mulher, para que esta cuide dele em sua residência, fornecendo alimentação e higiene, os serviços são assemelhados ao de uma creche. Desse modo, poderia configurar-se: ou o serviço de atendimento a diversas mães e filhos, vale dizer, uma autêntica creche, e, portanto, quem presta serviços seria equiparado a uma empresa; ou o serviço como empregada urbana, um autêntico vínculo empregatício.
Se, no caso concreto, quem trabalhou pede o seu reconhecimento como doméstica, e a mãe da criança aduz a existência de outro tipo de relacionamento, quem deve provar o quê? Parece evidente que não negada a prestação de serviços, quem deveria provar a inexistência de subordinação era a reclamada. Isso, porque quem trabalha o faz, normalmente, de forma subordinada.
Pondere-se que a subordinação aqui aduzida é a objetiva, não exigindo “a efetiva e constante atuação da vontade do empregador na esfera jurídica do empregado. Basta a possibilidade jurídica dessa atuação. Por isso, a subordinação não deve ser confundida com submissão a horário, controle direto do cumprimento de ordens, etc. O que importa é a possibilidade, que assiste ao empregador, de intervir na atividade do empregado”.
Pode-se presumir que a higiene e alimentação da criança era feita segundo critérios e orientações determinados pela mãe.
5. A solução de um caso concreto
A E. 2.ª Turma do TRT da 9.ª Região debruçou-se em caso semelhante, cuja solução deu-se da seguinte maneira, em síntese:
“Não se vislumbra óbice ao reconhecimento de vínculo doméstico em face da prestação de serviço em domicílio da trabalhadora. O que importa para análise do caso concreto é se a atividade era prestada em função do âmbito residencial da ré, mostrando-se irrelevante, com todo respeito, o local em que desenvolvida. A reclamada não negou a prestação de serviços, mas apenas asseverou outro tipo de relacionamento. Atraiu, portanto, para si o ônus de provar a existência desse outro tipo de vínculo (artigos 818 da CLT e 333, II, do CPC). Sendo pacífica a prestação de serviços, exsurge a presunção “juris tantum” de existência da relação doméstica, enquanto consectário lógico daquela situação fática. Claro que tal presunção pode ser elidida por substratos probatórios em sentido diametralmente oposto, fato que, entretanto, inocorre no caso em apreço”.
No que diz respeito à analogia com a mãe crecheira, entendeu-se que: “Quanto à alegação da peça de resistência de que a autora funcionava como uma espécie de ´mãe-crecheira”, ela não é significativa para os fins pretendidos. Mesmo admitindo-se tal hipótese, a jurisprudência é forte no sentido de que este fato também não impede reconhecimento de vínculo empregatício: ´Vínculo empregatício. Mãe-crecheira. FEBEM. A prestação de serviços nos moldes da Lei n. 7.644/87, consistente no atendimento de crianças da comunidade, gera vínculo empregatício entre as partes. A expressa e restritiva indicação, na referida lei, de quais os dispositivos celetistas aplicáveis à espécie (artigos 5.º e 19) apenas indica a existência de contrato especial de emprego. (…)””.
6. Conclusões
O vínculo empregatício e o vínculo doméstico são regulados, em essência, por normas diferentes. O primeiro, pela CLT e, o segundo, pela Lei n.º 5.859/72 e pelo Decreto n.º 71.885/73 (a CLT só incidirá quando, em cada caso, expressamente assim estiver previsto -art. 7.º, caput).
O doméstico pode trabalhar em domicílio, da forma como prevê o art. 6.º da CLT, se assim requer a natureza dos serviços contratados. “No âmbito residencial” não quer significar, necessariamente, na residência do empregador, mas apenas que o serviço, sem fim lucrativo, se destine a servir a família.
Se a prestação de serviços ocorre de forma subordinada, mas fica caracterizada a ausência de finalidade lucrativa, é possível reconhecer-se o trabalho doméstico da mãe-crecheira, que presta serviço em sua própria casa, cuidando de filho alheio.
Por outro lado, os serviços da mãe-crecheira também podem se assemelhar aos de uma autêntica creche e, desse modo, podem se equiparar a uma empresa; ou, em última análise, podem se caracterizar como aqueles típicos de uma empregada urbana, configurando-se, assim, um autêntico vínculo empregatício. Tudo depende da análise de cada caso concreto, à luz, vale lembrar, do conceito de subordinação objetiva, que não exige a real atuação da vontade do empregador na esfera jurídica do empregado, bastando apenas sua efetiva possibilidade.
Luiz Eduardo Gunther
é juiz do TRT da 9.ª Região e Cristina Maria Navarro Zornig é assessora no TRT da 9.ª Região