Jogar xadrez foi, durante um curto tempo da minha mocidade, a coisa mais importante do mundo. Na juventude vivemos diversas coisas mais importantes do mundo durante breves períodos de tempo. Aquelas que se perpetuaram, foram as que traçaram os destinos das nossas vidas. Outras ficaram perdidas no tempo e foram enchendo o caderno das lembranças.
Não foi o xadrez que ficou comigo. Quem sabe que grande campeão foi perdido?!
Mas o jogo de xadrez era a coisa mais importante naquele pequeno bar de quatro ou cinco mesas, bem próximo à praça, conseqüentemente da catedral, do cinema, do centro da cidade, das reuniões dos amigos, do passeio das moças e dos nossos sonhos, naquela tarde de verão da cidade do interior do Rio Grande do Sul. Uma mesa/tablado junto à janela, coberta por uma cortina com cordão de São Francisco – aquele pingente tipo pon-pon rococó, mais para enfeite que para puxador – um guaraná e dois copos assistiam a uma partida de xadrez na qual nossos neurônios se concentravam, se armavam e travavam a maior das batalhas do final da tarde. Era, sem dúvida a coisa mais importante do mundo. Nada deveria ou poderia perturbar nossa concentração.
Chegou, então, o Carlinhos, companheiro de praça, amigo que gostava de mim, o que era recíproco. A praça, à tardinha, no verão, nas férias, era a coisa mais importante do mundo também. As conversas, as projeções, nossos sonhos, algumas moças, algum carro novo na cidade, uma ou outra fofoca. A praça no final da tarde, enfim, era nossa hora mágica.
E o Carlinhos procurara-me na praça e veio buscar-me no bar onde, naquele momento, eu misturava e confundia as coisas mais importantes do mundo.
Convocou-me. Disse-lhe que esperasse, pois eu estava jogando xadrez. Puxou uma cadeira, colocou-a na diagonal, meio atrás de mim, como se fosse jogar comigo, torcer, pensar junto, levar-me à vitória. Começou a brincar com o pingente da cortina, empurrando-o como um pêndulo que roçava a cabeça dos reis, rainhas e bispos, os mais altivos guerreiros do tabuleiro.
E vai e vem, vai e vem. Percebi que o enfeite lambia a cabeça das peças e que uma tragédia se anunciava: a derrubada da coisa mais importante do mundo naquele momento. A ousadia do amigo era irritante, porque calculada: "se acabo com esse jogo iremos fazer a coisa mais importante da tarde e da vida, ir para a praça".
Voltei-me para ele e ameacei com a gíria da época: "Se derrubar, te prego a mão na orelha!".
E o Carlinhos, mais dois ou três irritantes vai-e-vens, derrubou meu rei, o qual derrubou a minha dama, a qual derrubou o bispo, o qual derrubou o cavalo e lá se foi o jogo inteiro.
Virei-me e cumpri a ameaça. Dei-lhe o tapa que mudou a minha vida, a minha maneira de ver muitas coisas, principalmente a agressão, a amizade, a importância das coisas em cada momento.
Fiquei em pé, na sua frente, punhos cerrados, esperando a reação.
A reação do amigo da praça foi mortal, despedaçou-me, acabou comigo. Ele levou a mão ao rosto, que ganhou uma expressão que jamais conseguirei descrever, seus olhos ficaram mais cândidos e com uma voz que também não sei qualificar disse-me carinhosa e tristemente: "Eu só queria que você fosse comigo para a praça".
Saiu do bar, como se fosse sair da minha vida. Deixou-me lá, estático, esperando que ele voltasse para irmos para a praça, a coisa mais importante que eu tinha para fazer naquela tarde de verão.
O Carlinhos não saiu da minha vida. Estamos distantes há muitos anos. Não sei nem se ele se lembra do episódio e, com certeza, não sabe que a sua mão no rosto, sua expressão e seu olhar mudaram, em mim, conceitos, moldaram minhas atitudes e suavizaram minhas reações.
O episódio não me tornou uma pessoa quase perfeita, dessas capazes de dar a outra face. Também não me livrou dos impulsos raivosos e descontrolados em muitas situações, principalmente durante a mocidade. Mas, com certeza, me poupou de muitas outras agressões e, o que é a coisa mais importante do mundo em se falando de atitude: ensinou-me a humildade de pedir perdão.