O supremo valor da vida

O Supremo Tribunal Federal (STF) está prestes a julgar a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF – n.º 54 MC/DF/2004 promovida pelo Conselho Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS), juntamente com a organização não-governamental Anis, que pede sejam liberados os procedimentos para o aborto de fetos anencéfalos, ou seja, aqueles que de acordo com a Resolução n.º 1.752/04, do Conselho Federal de Medicina do Brasil, “são natimortos cerebrais, por não possuírem os hemisférios cerebrais, condenados a uma parada cardiorrespiratória fatal ainda durante as primeiras horas pós-parto”.

Em louvável iniciativa que se repete no Supremo Tribunal Federal, teve inicio uma série de audiências públicas entre os vários setores interessados.

As oitivas ainda não terminaram, mas renomados cientistas da área da medicina fetal e genética já discursaram, havendo consenso de que a anencefalia é letal em 100% dos casos, quando o diagnóstico é correto. Além disso, foi divulgada pesquisa da Unifesp – Universidade Federal de São Paulo -, com 80 mulheres que geraram fetos com anencefalia, em que metade delas apresentou variações no líquido amniótico – quando o bebê não consegue deglutir o líquido e ele se acumula -, o que pode gerar problemas renais para a mãe. Isso quando outros males não ocorrem como a diabetes, a hipertensão, o parto prematuro, o sofrimento psíquico e até necessidade de retirada do útero. Além disso, muito se sustentou a respeito do direito de opção da mulher ser determinante e relevado nesses casos.

Entre os especialistas contrários, os principais argumentos utilizados se relacionam ao direito à vida e à possibilidade do erro de diagnóstico, sendo citado o caso da menina Marcela de Jesus, que teve sobrevida de um ano e oito meses no interior de São Paulo, em caso de anencefalia parcial.

Paralelamente a essas controversas ponderações, há que reconhecer-se como sendo defensável a argumentação jurídica de que pode ser considerado legal o aborto em casos tais em função da existência de risco à gestante e em virtude de ressalvas em tratados internacionais que protegem a vida, havidas para não colidirem com normas costumeiras de países signatários, como as hipóteses brasileiras de aborto legal em decorrência de estupro e risco de vida à gestante.

Entretanto, se no plano jurídico é de fácil acomodação a decisão, mais complicada se mostra a análise pelo prisma da ética e da religião. A razão para que essas aconteçam decorre do fato de que Direito é produto dos influxos da ética-moral (costumes) e da religião. Então, sendo o Direito o substrato da ética, ou a sua parte mais relevante, não deverá o Direito com ela colidir e se tal acontecer o julgamento poderá ser justo, mas antiético ou anti-religioso.

Assim considerado, no plano ético o direito à vida é absoluto. Estado nenhum pode ter o direito de retirá-la de quem quer que seja. Estado deve prestar-se a proteger a vida, nunca para determinar o seu fim. Se o Estado brasileiro incrimina quem corta uma árvore do bioma atlântico, e o faz com sapiência, com mais afinco deve proteger a vida humana. Razões de ordem econômica e individual não podem sobrepor-se a esse valor. Portanto, não há argumento ético capaz de referendar o apoio ao aborto do anencéfalo.

Nos argumentos religiosos mais facilmente se encontra escoro para ser considerada como censurável a proposta. É que as religiões, cristãs ou não, são contrárias à possibilidade do homem interferir nos desígnios “divinos”. Se pessoas necessitam passar por um período probatório mais denso é porque assim as coisas devem ser. Então, não é nas religiões que haverá apoio a essa proposta interpretativa.

Portanto, não se harmonizando o aborto do anencéfalo nem com a ética e nem com a religião, surpreendente foi o comentário do relator, ministro Marco Aurélio Mello, de que a descriminalização do aborto, nesse caso, será aprovada por “onze a zero” na votação do Supremo Tribunal Federal.

Tomara, ao final, que o vaticínio do ministro não se cumpra, o supremo valor da vida prevaleça e o homem pare de brincar de Deus.

Luiz Fernando Tomasi Keppen é juiz de Direito, mestre em Direito pela UFPR. Professor da Falec.

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