Os ministros do Supremo Tribunal Federal são comumente chamados a analisar prisões resultantes de furto de objetos de pequeno valor, como cadeados, pacotes de cigarro e até mesmo catuaba, bebida conhecida como afrodisíaco natural. Nesses casos, eles aplicam o princípio da insignificância que, desde o ano passado, possibilitou o arquivamento de 14 ações penais, com a consequente soltura dos condenados.
Após passar por três instâncias do Judiciário, situações como essas chegam ao Supremo Tribunal Federal por meio de pedidos de habeas corpus. A maioria é impetrada pela Defensoria Pública da União contra decisões do Superior Tribunal de Justiça pela manutenção das prisões e das denúncias feitas contra os acusados.
Em pelo menos cinco processos, o STJ reverte entendimento de segunda instância pela liberdade dos acusados, restabelecendo a condenação. Em outras palavras, os presos têm que passar por quatro instâncias do Judiciário para obterem uma decisão final favorável.
Quando chegam ao Supremo, em geral os ministros-relatores concedem liminar para suspender a prisão. Responsáveis por julgar os habeas corpus em definitivo, em quase 100% dos casos a Primeira e a Segunda Turmas da Corte concedem o pedido para anular a prisão e a denúncia.
Os ministros aplicam a esses casos o princípio da insignificância que reúne quatro condições essenciais: mínima ofensividade da conduta, inexistência de periculosidade social do ato, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão provocada. As decisões também levam em conta a intervenção mínima do Estado em matéria penal.
Segundo esse entendimento, o Estado deve ocupar-se de lesões significativas, ou seja, crimes que têm potencial de efetivamente causar lesão. Desde o ano passado, chegaram ao Supremo 18 pedidos de habeas corpus pela aplicação do princípio da insignificância.
Desses, 15 foram analisados, sendo que 14 foram concedidos em definitivo e um foi negado por uma questão técnica, mas teve a liminar concedida. Três habeas ainda não foram julgados.
Dos 15 pedidos analisados, 10 foram impetrados pela Defensoria Pública da União contra decisões do STJ. Os demais são contra decisões do Superior Tribunal Militar condenando soldados pela posse de quantidade ínfima de entorpecentes em quartéis.
Essa matéria não é pacífica na Corte e há Ministros que decidem a favor e contra os condenados. Dos 15 habeas corpus já julgados, 11 são provenientes do Rio Grande do Sul, dois são do Mato Grosso do Sul, um é do Paraná e um é de São Paulo.
O que geralmente ocorre é a condenação em primeira instância, revertida nos Tribunais de Justiça e reaplicada pelo STJ. Entre os pedidos feitos contra decisão do STJ, há o caso de um jovem condenado pela Justiça do Mato Grosso do Sul a sete anos e quatro meses de reclusão pelo furto de mercadorias avaliadas em R$ 38,00.
À época dos fatos, o rapaz tinha entre 18 e 21 anos, circunstância que diminui a pena. Ele foi acusado de furtar um pacote de arroz, um litro de catuaba, 1 litro de conhaque e dois pacotes de cigarro.
Apesar de recorrer a três instâncias, somente no Supremo o jovem conseguiu a liberdade e o arquivamento da denúncia. A decisão foi da Segunda Turma do STF. Na ocasião, o ministro Eros Grau, relator do pedido de habeas corpus, disse que “a tentativa de furto de bens avaliados em míseros R$ 38,00 não pode e não deve ter a tutela do Direito Penal”.
Outra denúncia de furto de mercadorias no valor de R$ 80,00 em Osório, no Rio Grande do Sul, e que resultou em prisão de dois anos de reclusão, também foi analisada pela Segunda Turma.
O relator do caso foi o ministro Celso de Mello, segundo o qual o princípio da insignificância deveria ser aplicado ao caso, mesmo não tendo sido discutido quando o pedido de habeas corpus foi analisado pelo STJ.
“Os fundamentos em que se apóiam a presente impetração põem em evidência questão impregnada do maior relevo jurídico”, disse ele ao conceder o pedido. Em sua decisão, Mello informa que o furto de um liquidificador, um cobertor e um forno elétrico equivalia, à época do fato, a 30,76% do salário-mínimo vigente e, atualmente, a 19,27% do atual salário-mínimo.
O princípio da insignificância foi aplicado ainda em uma acusação de tentativa de furto de sete cadeados e de um condicionador de cabelo avaliados em R$ 86,50. O caso também ocorreu no Rio Grande do Sul, onde a Justiça condenou o acusado a dois anos de reclusão e ao pagamento de multa.
Outra hipótese de aplicação do princípio da insignificância pelo Supremo ocorre em denúncias contra devedores de débitos fiscais de baixo valor. Nesses casos, os Ministros aplicam o artigo 20 da Lei nº. 10.522, de 2002, que determina o arquivamento de processos que tratem de execuções fiscais de débitos inscritos na dívida ativa da União no valor igual ou inferior a R$ 10 mil. Fonte: STF.
Pois bem.
Como ensina Cezar Roberto Bitencourt, “a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico”(1).
Está-se aí diante do velho adágio latino minima non curat praetor , que fundamenta o princípio da bagatela, cunhado por Claus Roxin, na década de 60. Francisco de Assis Toledo ensina que Welzel considerava que “o princípio da adequação social bastaria para excluir certas lesões insignificantes. É discutível que assim seja.
Por isso, Claus Roxin propôs a introdução, no sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação.
Trata-se do denominado princípio da insignificância, que permite, na maioria dos tipos, excluir os danos de pouca importância. Não vemos incompatibilidade na aceitação de ambos os princípios que, evidentemente, se completam e se ajustam à concepção material do tipo que estamos defendendo.
Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas”(2).
Segundo Carlos Vico Manãs, “o princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção da fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, o que consagra o postulado da fragmentariedade do direito penal”.
Para ele, tal princípio funda-se “na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente relevante os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal”.(3)
Para Maurício Antônio Ribeiro Lopes, “o juízo de tipicidade, para que tenha efetiva significância e não atinja fatos que devam ser estranhos ao Direito Penal, por sua aceitação pela sociedade ou dano social irrelevante, deve entender o tipo, na sua concepção material, como algo dotado de conteúdo valorativo, e não apenas sob seu aspecto formal, de cunho eminentemente diretivo.
Para dar validade sistemática à irrefutável conclusão político-criminal de que o Direito penal só deve ir até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico, não se ocupando de bagatelas, é preciso considerar materialmente atípicas as condutas lesivas de inequívoca insignificância para a vida em sociedade.
É notável a síntese apresentada por Sanguiné sobre o conteúdo da tipicidade material ao dispor que a tipicidade não se esgota na concordância lógico-formal (subsunção) do fato no tipo.
A ação descrita tipicamente há de ser geralmente ofensiva ou perigosa a um bem jurídico. O legislador toma em consideração modelos de vida que deseja castigar. Com essa finalidade, tenta compreender, conceitualmente, de maneira mais precisa, a situação vital típica.
Embora visando alcançar um círculo limitado de situações, a tipificação falha ante a impossibilidade de regulação do caso concreto em face da infinita gama de possibilidades do acontecer humano.
Por isso, a tipificação ocorre conceitualmente de forma absoluta para não restringir demasiadamente o âmbito da proibição, razão porque alcança também casos anormais.
A imperfeição do trabalho legislativo não evita que sejam subsumíveis também nos casos que, em realidade, deveriam permanecer fora do âmbito de proibição estabelecido pelo tipo penal.
A redação do tipo penal pretende, por certo, somente incluir prejuízos graves da ordem jurídica e social, porém não pode impedir que entrem em seu âmbito os casos leves.
Para corrigir essa discrepância entre o abstrato e o concreto e para dirimir a divergência entre o conceito formal e o conceito material de delito, parece importante utilizar-se o princípio da insignificância”(4).
ALIÁS, ATENTEMOS QUE “EM TEMPO DE PENSAR A GESTÃO E A ESTRUTURA DO PODER JUDICIÁRIO, NOTADAMENTE APÓS A EMENDA CONSTITUCIONAL 45, E FACE AO ACÚMULO DE PROCESSO QUE GERA INSUPORTÁVEL MOROSIDADE AOS JURISDICIONADOS, O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA REPRESENTA SOFISTICADO MECANISMO OBSTACULIZADOR DE DEMANDAS CUJO CUSTO É INJUSTIFICÁVEL”(5).
Ademais, é sabido desde há muito que a norma penal “existe para a tutela de alguns bens ou interesses (de especial relevância) consubstanciados em relações sociais valoradas positivamente pelo legislador para constituir o objeto de uma especial e qualificada proteção, como é a penal”(6) Logo, alguém só “pode ser responsabilizado pelo fato cometido quando tenha causado uma concreta ofensa, ou seja, uma lesão ou ao menos um efetivo perigo de lesão para o bem jurídico que constitui o centro de interesse da norma penal”(7). É a aplicação do princípio da ofensividade(8), segundo o qual nulla poena, nullum crimen, nulla lex poenalis sine iniuria.
É de Luigi Ferrajoli a seguinte lição: “La necesaria lesividad del resultado, cualquiera que sea la concepción que de ella tengamos, condiciona toda justificación utilitarista del derecho penal como instrumento de tutela y constituye su principal límite axiológico externo. Palabras como “lesión’, “daño’ y “bien jurídico’ son claramente valorativas”(9).
Ora, se a conduta do agente não lesa (ofende) o bem jurídico tutelado, não causando nenhum dano, ou, no máximo, um dano absolutamente insignificante, não há fato a punir por absoluta inexistência de tipicidade, pois “la conducta que se incrimine ha de ser inequivocamente lesiva para aquellos valores e intereses expresivos de genuínos “bienes juridicos'”(10).
Relembre-se que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, ou seja, a sua intervenção só será aceitável em casos de ataques relevantes a bens jurídicos tutelados pelo Estado. Paulo Queiroz, por exemplo, explica o inexpressivo sentido jurídico penal de determinadas condutas, nada obstante típicas abstratamente:
“É que não tem o legislador, em face das limitações naturais da técnica legislativa e da multiplicidade de situações que podem ocorrer, o poder de previsão, casuística, das hipóteses efetivamente merecedoras de repressão. Noutros termos, falta-lhe o poder de prever em que grau e em que intensidade devem tais ações merecer, in concreto, castigo. Não lhe é possível, enfim, ao prever tipos abstratos, ainda que se atendo àquelas lesões mais significativas, fixar, segundo o caso concreto, em que intensidade a lesão deve assumir relevância penal efetiva. Com bem assinala Maurach, nenhuma técnica legislativa é tão acabada a ponto de excluir a possibilidade de que, em alguns casos particulares, possam ficar fora da ameaça penal certas condutas que não apareçam como merecedoras de pena. Vale dizer, a redação do tipo legal pretende certamente só incluir prejuízos graves à ordem jurídica e social , porém não impede que entrem também em seu âmbito os casos mais leves, de ínfima significação social. Enfim, o que in abstrato é penalmente relevante pode não o ser verdadeiramente, isto é, podem não assumir, in concreto, suficiente dignidade e significado jurídico-penal”(11).
Assim, impõe-se a aplicação do princípio da insignificância, pois somente as condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra bens jurídicos efetivamente relevantes carecem dos rigores do Direito Penal.
Seu aparecimento “recomenda a aplicação do Direito Penal apenas nos casos de ofensa grave aos bens jurídicos mais importantes (principio bagatelar próprio)”(12).
Já o seu fundamento “está, também, na idéia de proporcionalidade que a pena deve guardar em relação à gravidade do crime. Nos casos de ínfima afetação ao bem jurídico o conteúdo do injusto é tão pequeno que não subsiste nenhuma razão para o pathos ético da pena, de sorte que a mínima pena aplicada seria desproporcional à significação social do fato”(13).
Aliás, como dissemos acima, “el origen del estudio de la insignificancia se remonta al año 1964, cuando Claus Roxin formuló una primigenia enunciación, la que fuera reforzada desde que se contemplaba idéntico objeto por Claus Tiedemann, con el apelativo de delitos de bagatela”(14).
Como ensina Luiz Flávio, “pequenas ofensas ao bem jurídico não justificam a incidência do direito penal, que se mostra desproporcionado quando castiga fatos de mínima importância (furto de uma folha de papel, de uma cebola, de duas melancias etc.). Dogmaticamente falando, já não se discute que o princípio da insignificância (ou da bagatela, como lhe denominam os italianos, assim como Tiedemann) exclui a tipicidade, mais precisamente a tipicidade material.”
Para ele, hoje, “já praticamente ninguém nega a relevância do princípio da insignificância (ou da bagatela) no direito penal. Não há dúvida que é um princípio de política criminal, mas adotado e aplicado diariamente pelos juízes e tribunais”(15).
Este princípio tem sido aplicado pelo Supremo Tribunal Federal mesmo quando se trata de crimes militares. Assim, por unanimidade, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal absolveu o militar R.P.G. que, provocado injustamente, desferiu um soco no provocador.
O Superior Tribunal Militar negou apelação em ação penal por lesão corporal leve. Daí por que a Defensoria Pública da União recorreu ao STF, pela via de Habeas Corpus (HC 95445). O relator do processo, ministro Eros Grau, manifestou-se pela concessão do HC, aplicando ao caso o princípio da insignificância. Fonte: STF.
Em outra oportunidade, o soldado da Força Aérea Brasileira L.C.F., acusado de cometer crime de peculato, teve pedido de arquivamento da ação penal concedido pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal.
Os ministros deferiram o Habeas Corpus (HC) 92634, que tinha objetivo de determinar que a Auditoria da 7.ª Circunscrição da Justiça Militar se abstivesse, até o julgamento do mérito do HC, de praticar qualquer ato na ação penal movida contra o soldado pelo Ministério Público Militar.
Consta na ação que o soldado confessou ter rasurado uma ficha de hospedagem do Cassino de Soldados e Sargentos da Base Aérea de Recife, alterando a data de entrada de um hóspede de 3 para 8 de julho de 2006, apropriando-se, assim, de cinco diárias de pernoite, no valor total de R$ 75.
Constatado o fato em 17 de julho de 2006, a defesa alega que L.C.F. devolveu voluntariamente, no dia seguinte (18), a quantia desviada. A Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, relatora da ação, encaminhou o seu voto no sentido de deferir a ordem a fim de cassar a sentença condenatória que possa ter ocorrido e reconhecer a atipicidade do fato imputado, determinando o trancamento da ação penal em curso na 7.ª Circunscrição Judiciária Militar.
Para a relatora, neste caso, não há comprometimento da hierarquia nem da disciplina e a apropriação “é muito insignificante para o aparelho estatal”. Ela citou o julgamento do HC 87478, de relatoria do ministro Eros Grau, em que o Supremo entendeu que em peculato praticado por militar neste caso o valor era de R$ 455 a manutenção da ação teria conseqüências mais graves do que a de condenar.
“Aqui está verificado o princípio da insignificância apesar de ser crime militar”, disse Cármen Lúcia, ressaltando que sanções administrativas são cabíveis ao caso. Segundo ela, apesar de ser um gesto tipificado penalmente, o valor apropriado é mínimo e houve ressarcimento integral do prejuízo.
O ministro Menezes Direito lembrou, ainda, que, de acordo com a jurisprudência do Supremo, “se aplica também o princípio da insignificância quando se cuida de crime militar desde que esse princípio não alcance a hierarquia e a disciplina militar”. Fonte: STF.
Também por unanimidade, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal determinou o trancamento definitivo de ação penal em curso na 4.ª Auditoria da Justiça Militar, no Rio de Janeiro, contra o cabo da Marinha S.R.M., que abandonou seu posto, quando prestava guarda, para dar assistência a um filho internado às pressas para retirar um rim.
Temeroso de não obter autorização, o militar não informou de imediato a seus superiores sobre a necessidade de se ausentar. Ao julgar o Habeas Corpus (HC 92910), a Turma acompanhou o voto do relator, ministro Celso de Mello, que aplicou o princípio da insignificância ao caso, lembrando que o cabo estava vigiando uma bomba de gasolina, trancada, quando recebeu um telefonema desesperado da esposa, pedindo seu comparecimento a um hospital, onde um filho seu havia sido internado de urgência para ser submetido a uma operação de rim. Diante disso, o militar pediu a um colega que o substituísse e abandonou o posto, retornando horas depois para reassumi-lo.
Fonte: STF.
Ainda que se trate de delito militar ligado ao consumo de droga encontramos decisões favoráveis à aplicação do aludido princípio. Neste sentido, cita-se o Habeas Corpus n.º 94809, tendo como relator o Ministro Celso de Melo. Na respectiva decisão, lê-se:
“Com efeito, esta Suprema Corte tem admitido a aplicabilidade, aos delitos militares, inclusive ao crime de posse de quantidade ínfima de substância entorpecente, para uso próprio, mesmo no interior de Organização Militar, do postulado da insignificância: “O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL.- O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal! postulado -que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada -apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: ‘DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR’.- O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social”. (HC 84.687/MS, Rel. Min. CELSO DE MELLO). (…) Cumpre também acentuar, por relevante, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido, na matéria em questão, a inteira aplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes militares (HC 87.478/PA, Rel. Min. EROS GRAU – HC 92.634/PE, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – RHC 89.624/RS, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA), mesmo que se cuide de delito de posse de quantidade ínfima de substância entorpecente, para uso próprio, e ainda que se trate de ilícito penal perpetrado no interior de Organização Militar (HC 93.822/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 94.085/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).Entendo importante destacar, neste ponto, fragmento do voto (vencido) do eminente ministro FLÁVIO BIERRENBACH (que tem o beneplácito da jurisprudência desta Suprema Corte), proferido quando do julgamento, que, emanado do E. Superior Tribunal Militar, motivou a presente impetração (fls. 44/53, 44/47):”Este é mais um caso de porte de entorpecente no interior de uma organização militar. Tenho sustentado sistematicamente, nesta Corte, a atipicidade da conduta de trazer consigo pequena quantidade de maconha. Sou convencido de que o porte de quantidade insignificante daquela substância específica é conduta incapaz de causar lesão significativa à saúde pública, enquanto bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora.Reputa-se insignificante um fato, ainda que formalmente típico, quando o seu resultado é desvalorizado, quando a lesão ao bem jurídico tutelado é considerada ínfima. Nessa hipótese, entende a jurisprudência que tal fato ou conduta é materialmente atípico e, portanto, não suscetível de gerar punição estatal.Disso depreende-se que o chamado ‘delito de bagatela’ está intrinsecamente associado ao nível de lesão ao bem jurídico tutelado. A avaliação da tipicidade da conduta, portanto, exige a individualização do bem jurídico protegido pela norma incriminadora e a avaliação do grau de lesão por ele sofrido.É sob essas premissas que a conduta de portar ou usar substância entorpecente, em área sob administração militar, deve ser analisada. Tal conduta encontra-se tipificada e definida no art. 290 do Código Penal Militar, com o ‘nomen juris’ de tráfico, posse ou uso de entorpecentes ou substância de efeito similar.À toda evidência, o fato dito criminoso no caso em apreço não apresenta real ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora. O soldado do Exército, Alex Silva de Campos, foi surpreendido com 3,0g (três gramas). Trata-se de quantidade ínfima, risível, incapaz de gerar a menor ameaça que seja à saúde e incolumidade públicas, bem jurídicos tutelados pela norma penal incriminadora. É nesse sentido a jurisprudência dominante dos tribunais, aplicando a casos semelhantes o princípio da insignificância, por ausência de lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico penalmente protegido, quando a quantidade encontrada é incapaz de gerar dependência química ou psicológica”.(grifei) Sendo assim, em juízo de estrita delibação, e sem prejuízo de ulterior reexame da questão suscitada nesta sede processual, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a suspender, cautelarmente, até final julgamento da presente ação de “habeas corpus”, a eficácia da condenação penal imposta, ao ora paciente, nos autos do Processo n.º 04/06-7 (3.ª Auditoria da 3.ª Circunscrição Judiciária Militar), sustando, em conseqüência, qualquer medida de execução das penas em referência, mantido íntegro, desse modo, o “status libertatis” de Alex Silva de Campos.Caso o paciente, por algum motivo, tenha sido preso em decorrência de mencionada condenação penal (Processo nº 04/06-7 3.ª Auditoria da 3.ª CJM), deverá ele ser imediatamente posto em liberdade, se por al não estiver preso.Comunique-se, com urgência, transmitindo-! se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal Militar (Apelação n.º 2006.01.050445-1), à 3.ª Auditoria da 3.ª Circunscrição Judiciária Militar (Processo n.º 04/06-7) e ao ilustre membro do Ministério Público Militar que subscreveu a presente impetração (fls. 02/12).” (Segue)
Notas:
(1) Manual de Direito Penal – Parte Geral – Ed. Revistas dos Tribunais 4.ª ed., p. 45.
(2) Princípios Básicos de Direito Penal -Ed. Saraiva 4.ª ed. – 1991 – p. 132.
(3) O Princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal, 1.ª ed., São Paulo: Saraiva, pp. 56 e 81.
(4) Princípio da Insignificância no Direito Penal, 2.ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, págs.. 117/118.
(5) Artigo escrito coletivamente por Salo de Carvalho, Alexandre Wunderlich, Rogério Maia Garcia e Antônio Carlos Tovo Loureiro intitulado Breves Considerações sobre a Tipicidade Material e as Infrações de Menor Potencial in AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de e CARVALHO Salo de (organizadores). A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de administração da Justiça Criminal. Sapucaia do Sul RS: Notadez, 2006, p. 144.
(6) Luiz Flávio Gomes, Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 18.
(7) dem, p. 15.
(8) Sobre o assunto, conferir a recente obra de Luiz Flávio Gomes, “Princípio da Ofensividade no Direito Penal”, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
(9) Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 467.
(10) Antonio Garcia-Pablos, Derecho Penal Introducción, Madrid: Servicio Publicaciones Facultad Derecho Universidad Complutense Madrid, 1995, 265.
(11) Paulo de Souza Queiroz – Do caráter subsidiário do direito penal Lineamentos para um direito penal mínimo, Editora Del Rey, Belo Horizonte 1998, p.122
(12) Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira, O princípio da insignificância ou bagatela – conceito, classificação hodierna e limites, Revista Jurídica Consulex Ano VIII n.º 186 15 de outubro/2004, p. 62.
(13) José Henrique Guaracy Rebelo, Princípio da Insignificância, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 38.
(14) Enrique Ulises García Vitor, La Insignificancia en el Derecho Penal, Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 20.
(15) Site: ultimainstancia.com.br terça-feira, 9 de novembro de 2004.
Rômulo de Andrade Moreira é procurador de Justiça na Bahia. Foi assessor especial do procurador-geral de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex-procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-Unifacs, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da Unifacs. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-Unifacs (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm, do Curso IELF, da Universidade Jorge Amado e da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Autor das obras “Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria) e “Juizados Especiais Criminais” Editora JusPodivm, 2008, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.