O STJ, Tim Maia e o processo da Lei de Tóxicos

1 – Deus me perdoe por invocar o saudoso Tim Maia em vão. Minha professora de Direito Civil I, Leilane Zavarize, nos idos de 1993, na UFSC, me ensinou e depois comprovou, que uma lei revoga a outra, deixando a anterior de gerar efeitos. Depois, Vera Andrade deixou claro que, desde Beccaria, o “Princípio da Legalidade” é uma conquista democrática. Desde então, acreditava: a lei posterior revoga a anterior.

2 – Pois bem, a nova Lei de Tóxicos – n.º 10.409/02 -, revogou a parte procedimental da Lei n. 6.368/76, sendo, portanto, conclusão lógica, de que só existe um procedimento a ser aplicado desde então: o previsto na Lei n.º 10.409/02. Estamos juntos – acredito – até aqui, porque os que se prestaram a ler este fragmento, por certo, são iniciados em leis…

3 – Com a nova legislação, portanto, até que enfim o tom quase tão-só inquisitivo do processo foi modificado, aproximando-o do acusatório/democrático. Mas dá muito trabalho e comete o sacrilégio de levar a sério o direito de defesa que, em tempos neoliberais, não interessa; o que interessa é a condenação rápida e eficiente para excluir (Young), e quanto menos defesa melhor (basta ler o Documento 319 do BID).

4 – Assim, desconsiderando-se o princípio comezinho da legalidade, interpretações – fale-se baixinho – flagrantemente contra legem passaram a ser expelidas pelos Tribunais e não por parte dos sempre massacrados ditos “alternativos”. Os do senso comum teórico (Warat), alicerçados, é evidente, em doutrinadores de escol, a la Kraemer e Sprenger, assim o fizeram. Para eles, todavia, não tem problema, porque retoricamente a questão foi deslocada para a “ausência de prejuízo”. Eles dizem e acreditam – o que é pior – não existir prejuízo. Na ótica de quem? Do acusado ou da “defesa social”?

5 – Qualquer um que tenha se atualizado em processo, e não precisa ir muito longe, ou seja, que tenha lido um pouco de Fazzalari, Ferrajoli, Cattoni ou Miranda Coutinho, sabe que o “processo como procedimento em contraditório” exige, para sua validade democrática, o cumprimento, step by step, da lei processual. Descumprida uma fase antecedente, a posterior resta contaminada, por básico. A clareza e manutenção das “regras do jogo processual” – não custa relembrar aos esquecidos – é conquista histórica, e sua defesa tarefa democrática inafastável. Por favor, é preciso trocar Manoel Gonçalves por Canotilho.

6 – A singela leitura do art. 38, da Lei n.º 10.409/02, deixa antever os nefastos prejuízos à defesa com a obliteração de seu cumprimento, aplicando-se, para condenar, – claro -, a legislação anterior que, de fato e de direito, não existe! Se não existe juridicamente, a decisão, ouso dizer, é absolutamente nula: fere de morte a democracia! E não me venha com o discurso cínico da “Lei e da Ordem” ou de cunho “positivista” – Lombroso ou Viveiros de Castro – porque com “Direito Fundamental” (e as regras de processo penal o são), não se transige, não se negocia, se defende, ensinou-me a vida e uma dogmática democrática de todos os tempos.

7 – Recentemente o Superior Tribunal de Justiça – Informativo de Jurisprudência n.º 199 (de 16 a 20 de fevereiro de 2004) e HC 26.900-SP -, apesar de entender que a Lei processual aplicável é a nova, aceitou a sobrevivência do rito antigo “por ausência de prejuízo”. Ora, se a lei processual não existe, é básico, o processo preparatório da sanção, isto é, as regras do jogo válidas não foram aplicadas e a decisão é nula, inconstitucional.

8 – Por isto que quando li o informativo lembrei de Tim Maia e sua voz possante – como faz falta! – que cantarolava magnificamente: “Vale, vale tudo…”. E, se mantida esta hermenêutica “positivista” de validade de regras revogadas que, retoricamente, não causem prejuízo, é bom se reeditar as Ordenações Afonsinas, Manuelinas, Filipinas, porque se a pretensão é condenar, nada melhor do que a legislação do Império, quiça da Inquisição, dado que nunca haverá prejuízo em favor do réu. Na lógica deles, o prejuízo seria da sociedade em deixar os hereges, digo, acusados, livres. Os lugares pré-interpretam, diria Lacan. O grau de civilidade de um povo, diz a melhor doutrina processual penal européia (Cordero, Pisapia, Figueiredo Dias, etc), é medido com maior precisão pelo número de regras processuais penais contidas na Constituição, mas, como essa gente não vive no Brasil, é preciso não esquecer que pressupõem serem elas levadas a sério e efetivadas sempre. Aqui a conversa é outra e só faz mostrar que temos muito caminho a percorrer.

Alexandre Morais da Rosa é doutorando em Processo Penal (UFPR), juiz de Direito (SC) e membro do “Movimento AntiTerror”.e-mail: alexandrerosa73@ig.com.br

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