Com o novo sistema constitucional de 1988, o Ministério Público ganhou relevantes funções. É certo que não logrou outras que pretendia, como a possibilidade de fazer investigação criminal de maneira direta, excluindo a polícia de inquéritos selecionados e especiais. Este poder é pretendido pelo Ministério Público desde 1936, quando, pela primeira vez, o Ministro Vicente Ráo tentou inserir no sistema jurídico o juizado de instrução. De lá para cá foram rejeitadas sete emendas à Constituição nesse sentido. Há uma oitava no Congresso Nacional.
Não obstante todas estas investidas, uma vez ou outra, o Ministério Público tenta conquistar a possibilidade da investigação criminal direta também junto ao Judiciário. Agora esta via pode ser-lhe impedida. Após denegada a possibilidade por uma das turmas do STF, um de seus Ministros resolveu levar a questão ao Tribunal Pleno, o que significa que a rejeição pode ser definitiva também no Judiciário.
Ciente do delicado momento, o Ministério Público reuniu suas forças e mobilizou-se, mais uma vez. Foi ao Supremo e apresentou memorial aos Ministros. Dialogou com cada um e expôs suas razões. Procurou mostrar-se única Instituição com credenciais de improbidade e honestidade capaz de realizar a função.
Impõe-se, assim, restringir o tema dos poderes investigatórios do Ministério Público a seus limites: a questão não é política, mas de respeito à Constituição Federal. Afaste-se da discussão a probidade inegável da grande maioria dos seus membros. Não se traga à baila eventuais carências de outras instituições. Estes temas, embora importantes, não se circunscrevem à constitucionalidade da função e, assim, não estão em debate e podem fazer com que se deixe a segundo plano a questão única que está em discussão: o respeito à nossa Carta Magna.
Por isso, o STF não pode assumir uma decisão “a meio termo” como a imprensa começa a insinuar. Decisão da Suprema Corte “a meio termo” coloca em risco a democracia. Seus Ministros não podem adotar sugestões (divulgadas pelo jornal “Folha de São Paulo”, edição de 20 de agosto último) tais como “o Ministério Público pode fazer algumas investigações desde que com algumas restrições para conter abusos”. Isso ofende ao sistema jurídico constituído e o STF é seu guardião maior. “Permitir que promotores e procuradores complementem auditorias do fisco e sindicâncias de outros órgãos públicos, mas desautorizá-los a interrogar pessoas suspeitas de praticar crime, porque essa seria uma tarefa típica do inquérito policial, que deve ser conduzido por delegado” é mudar para ficar como está, a fim de que a mudança permita fingir que não estamos como estávamos.
Levar o contraditório à investigação do MP é fazer processo sem a garantia constitucional do Juiz. Chamar “inquérito administrativo criminal” aquilo que não pode ser chamado “inquérito policial” (porque este é exclusivo da Polícia) é fazer a vida seguir como se tivesse mudado, embora saibamos que nada mudou.
Não. A democracia não se faz com “soluções meio-termo”, mas com o respeito intransigente aos preceitos constitucionais que recomendam, acima de tudo, o equilíbrio de poderes entre as Instituições que a compõem, a fim de que não haja supremacias institucionais geradoras de um estado totalitário.
O art. 144 da CF é explícito ao determinar exclusividade à Polícia para a investigação criminal. O Ministério Público tem o controle externo dessa atividade (art. 129,VII da CF) e, por óbvio, não pode praticar atos próprios da Polícia. Seria um contra-senso inconcebível. Corregedor dos próprios atos. Seria o mesmo que admitir que os integrantes do controle externo da Magistratura ou do Ministério Público, em vias de inclusão na reforma judiciária, pudessem efetuar atos jurisdicionais ou atos próprios da atuação acusatória.
Outra interpretação é tentativa de ludibriar a todos. Se quem pode o mais pode o menos, aquele que profere a sentença criminal também pode oferecer denúncia. A doutrina dos poderes implícitos, invocada pelo Ministério Público, só poderia ser aplicada se a Constituição Federal não atribuísse à Polícia função exclusiva. Não se tente desestabilizar o equilíbrio dos poderes inseridos na Constituição sem que haja, previamente, ampla e democrática discussão no Congresso Nacional.
Se nossa polícia tem problemas (e os tem) cabe enfrentá-los. Sua estrutura é arcaica. Não lhe são proporcionados meios científicos para realizar investigação. A formação técnica especializada de seus componentes é desprezada. A carreira policial não é incentivada. Porém, substituir-se uma Instituição pela outra para resolver essas carências é se fechar os olhos para a realidade. A polícia será ainda mais desprestigiada. O Ministério Público não possui estrutura suficiente para realizar todas as investigações necessárias, por mais que procure “selecionar” os casos a ser investigados. Acabará desprestigiado também.
Por outro lado, nosso sistema jurídico já permite um eficaz trabalho conjunto entre o Ministério Público e a Polícia. Basta que aquela Instituição cumpra, na prática, o determinado pela Constituição Federal, que lhe confere poder correcional sobre a atividade policial. Se o exercer diminuirá a alegada “corrupção” e impedirá as “investigações frustradas”. O Ministério Público pode requisitar a abertura de inquérito e requerer diligências. Se o fizer de maneira eficaz e sem ranços de expedientes burocráticos chegará a resultados ainda mais eficazes do que aqueles eventualmente conseguidos por sua arbitrária investigação realizada nos “inquéritos administrativos criminais”.
Em verdade, conclama-se que o Ministério Público e a Polícia cumpram suas funções já determinadas pela legislação. Trabalhem conjuntamente visando o maior dos fundamentos jurídicos de nossa Carta Magna: o bem comum.
Marco Antonio Rodrigues Nahum é juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo – TACRIM. Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM.