Não esqueçamos que a “adoção do duplo grau de jurisdição deixa de ser uma escolha eminentemente técnica e jurídica e passa a ser, num primeiro instante, uma opção política do legislador”(5).
O duplo grau de jurisdição tem caráter de norma materialmente constitucional, mormente porque o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) que prevê em seu art. 8.º, 2, h, que todo acusado de delito tem “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”, e tendo-se em vista o estatuído no § 2.º, do art. 5.º, da CF/88, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Ratificamos, também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque que no seu art. 14, 5, estatui que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei”.
É bem verdade que a doutrina se debate a respeito da posição hierárquica que ocupam as normas advindas de tratado internacional. Parte dela entende que caso a norma internacional trate de garantia individual, terá ela status constitucional, até por força do referido § 2.º.
Fábio Comparato, por exemplo, informa que “a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de expressarem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. (…) Seja como for, vai-se afirmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflitos entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico”(6): é o chamado princípio da prevalência da norma mais favorável(7).
Ada, Dinamarco e Araújo Cintra, após admitirem a indiscutível natureza política do princípio do duplo grau de jurisdição (“nenhum ato estatal pode ficar imune aos necessários controles”) e que ele “não é garantido constitucionalmente de modo expresso, entre nós, desde a República”, lembram, no entanto, que a atual Constituição “incumbe-se de atribuir a competência recursal a vários órgãos da jurisdição (art. 102, II; art. 105, II; art. 108, II), prevendo expressamente, sob a denominação de tribunais, órgãos judiciários de segundo grau (v.g., art. 93, III)”(8).
Com a Emenda Constitucional n.º 45, temos uma nova disposição constitucional, contida no art. 5.º, § 3.º, da Constituição Federal, segundo a qual “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
Aliás, segundo Luiz Flávio Gomes, em razão “do pensamento do Estado Moderno, da Revolução Francesa, do código napoleônico, onde reside a origem da confusão entre lei e Direito; os direitos e a vida dos direitos valeriam (exclusivamente) pelo que está escrito na lei; quando o correto é reconhecer que a lei é só o ponto de partida de toda interpretação (que deve sempre ser conforme a Constituição). A lei pode até ser, também, o ponto de chegada, mas sempre que conflita com a Carta Magna, perde sua relevância e primazia, porque, nesse caso, devem ter incidência (prioritária) as normas e os princípios constitucionais. A lei, como se percebe, foi destronada. Mesmo porque, ao contrário do que pensava Rousseau, o legislador não é Deus e nem sempre representa a vontade geral, ao contrário, com freqüência atua em favor de interesses particulares (ou mesmo escusos). Lei vigente, como se vê, não é lei válida. Sua validez decorre da coerência com o texto constitucional”(9).
Vejamos, outrossim, estas observações de Dante Bruno D’Aquino:
“Como sua própria designação denota, a interpretação conforme a Constituição pressupõe um trabalho de exegese da norma infraconstitucional. Fundamenta-se, em primeiro plano, na superioridade hierárquica das normas constitucionais. Ou seja, no princípio pelo qual todas as normas devem se compatibilizar com a Constituição, encontrando nela, como já ressaltado por Kelsen, o seu fundamento de validade. Ao lado do primado da superioridade hierárquica das normas constitucionais está a presunção de legalidade da atividade legiferante do poder público. Esta presunção de legalidade, que, ressalte-se, admite prova em contrário, é o outro alicerce de alçada da interpretação conforme a Constituição. Noutro dizer, a superioridade hierárquica da Constituição Federal e a presunção de legalidade das leis demandam que, no exercício da atividade interpretativa, dê-se preferência ao sentido normativo que esteja consentâneo com a Carta Constitucional. (…) Importante constatar que a interpretação conforme a constituição, para além de uma categoria interpretativa distinta das modalidades clássicas, constitui um eficaz mecanismo de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Ao identificar a interpretação mais harmônica com a Constituição, afasta da norma a possibilidade de interpretações que surtam efeitos inconstitucionais”(10).
Se temos a garantia constitucional da presunção de inocência, é evidente que não pode ser efeito de uma sentença condenatória recorrível, pura e simplesmente, um decreto prisional, sem que se perquira quanto à necessidade do encarceramento.
Como sabemos, entre nós, cabível será a prisão preventiva sempre que se tratar de garantir a ordem pública(11), a ordem econômica, ou por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. São estes os requisitos da prisão preventiva e que configuram exatamente o periculum libertatis. Estes requisitos, portanto, representam a necessidade da prisão preventiva, que não é outra coisa senão uma medida de natureza flagrantemente cautelar, pois visa a resguardar, em última análise, “a ordem pública”, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (há, ainda, os pressupostos desta prisão, que não nos interessam no presente estudo(12)).
Se assim o é a prisão será uma decorrência de uma sentença condenatória recorrível sempre que, in casu, for cabível a prisão preventiva contra o réu, independentemente de sua condição pessoal de primário e de ter bons antecedentes; ou seja, o que definirá se o acusado aguardará preso ou em liberdade o julgamento final do processo é a comprovação da presença de um daqueles requisitos acima referidos.
Conclui-se que a necessidade é o fator determinante para alguém aguardar preso o julgamento final do seu processo, já que a Constituição garante que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Por outro lado, como a ampla defesa (e no seu bojo a garantia do duplo grau de jurisdição) também está absolutamente tutelada pela Carta Magna, não se pode condicionar a admissibilidade da apelação ao recolhimento do réu à prisão, mesmo que ele não seja primário e não tenha bons antecedentes. Aqui, vamos, inclusive, mais além: mesmo que a prisão seja necessária (e se revista, portanto, da cautelaridade típica da prisão provisória), ainda assim, admitir-se-á o recurso, mesmo que não tenha sido preso o acusado, ou que, após ser preso, venha a fugir.
Observa-se que, agora, mesmo sendo cabível o encarceramento provisório (por ser, repita-se, necessário), o não recolhimento do acusado não pode ser obstáculo à interposição de eventual recurso da defesa, e se recurso houver, a fuga posterior não lhe obstará o regular andamento (não pode ser considerado deserto), pois “a garantia do duplo grau de jurisdição assegura o conhecimento e o julgamento da apelação mesmo que o Estado não alcance êxito na recaptura do acusado”(13).
Não concordamos, outrossim, que a exigência da prisão para recorrer fosse uma “regra procedimental condicionante do processamento da apelação”, como pensa Mirabete(14), pois, como contrapõe Luiz Flávio Gomes, “se não ofende a presunção de inocência ou a ampla defesa, indiscutivelmente ofende o princípio da necessidade de fundamentação da prisão, inscrito no art. 5.º, LXI”(15), mesmo porque “os princípios que disciplinam o cabimento das prisões cautelares são radicalmente distintos dos princípios que regulam a interposição, a admissibilidade, o conhecimento e o julgamento dos recursos”(16). (Segue)
Notas:
(5) Moraes, Maurício Zanoide de, Interesse e Legitimação para Recorrer no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 29.
(6) Apud Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91.
(7) “Este princípio, perseguido pelo direito internacional geral, e vigorosamente defendido por setores da doutrina brasileira, parece não haver ganho, até o presente, expressiva concreção na jurisprudência brasileira, devendo ser lembrada a questão do depositário infiel”. (Bahia, Saulo José Casali, Tratados Internacionais no Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 116).
(8) Teoria Geral do Processo, São Paulo: Malheiros Editores, 1999, 15.ª ed., p. 74.
(9) “Ser diplomado (já) não significa ter emprego ou sucesso profissional” 21 de junho de 2005.
(10) “Interpretação conforme a Constituição” – (19/6/2005).
(11) Conceito por demais genérico e, exatamente por isso, impróprio para autorizar uma custódia provisória que, como se sabe, somente se justifica no processo penal como um provimento de natureza cautelar (presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis). Há mais de dois séculos Beccaria já preconizava que “o réu não deve ficar encarcerado senão na medida em que se considere necessário para o impedir de escapar-se ou de esconder as provas do crime” (Dos delitos e das penas, São Paulo: Hemus, 1983, p. 55), o que coincide com dois outros requisitos da prisão preventiva em nosso País (conveniência da instrução criminal e asseguração da aplicação da lei penal). Decreta-se a prisão preventiva no Brasil, muitas vezes, sob o argumento de se estar resguardando a ordem pública, quando, por exemplo, quer-se evitar a prática de novos delitos pelo imputado ou aplacar o clamor público. Não raras vezes vê-se prisão preventiva decretada utilizando-se expressões como “alarma social causado pelo crime” ou para “aplacar a indignação da população”, e tantas outras frases (só) de efeito. A respeito, veja-se a preocupação dos juristas espanhóis Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Dominguez: “Tampoco puede atribuirse a la prisión provisional un fin de prevención especial: evitar la comisión de delitos por la persona a la que se priva de libertad. La propia terminología más frecuentemente empleada para expresar tal idea probable comisión de ´otros´ o ´ulteriores´ delitos deja entrever que esta concepción se asienta en una presunción de culpabilidad. (à) Por las mismas razones no es defendible que la prisión provisional deba cumplir la función de calmar la alarma social que haya podido producir el hecho delictivo, cuando aún no se ha determinado quién sea el responsable. Sólo razonando dentro del esquema lógico de la presunción de culpabilidad podría concebirse la privación en un establecimiento penitenciario, el encarcelamiento del imputado, como instrumento apaciguador de las ansias y temores suscitados por el delito. (à) La vía legítima para calmar la alarma social esa especie de ´sed de venganza´ colectiva que algunos parecen alentar y por desgracia en ciertos casos aflora no puede ser la prisión provisional, encarcelando sin más y al mayor número posible de los que prima facie aparezcan como autores de hechos delictivos, sino una rápida sentencia sobre el fondo, condenando o absolviendo, porque sólo la resolución judicial dictada en un proceso puede determinar la culpabilidad y la sanción penal.” (Derecho Procesal Penal, Madrid: Colex, 3.ª ed., 1999, pp. 522/523).
(12) Fumus commissi delicti: indícios da autoria e prova da materialidade do crime.
(13) José Antonio Paganella Boschi, “A sentença penal”, Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, n.º 5/2002.
(14) Processo Penal, São Paulo: Atlas, 10.ª ed., 2000, p. 649.
(15) Direito de Apelar em Liberdade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.ª ed., p. 32.
(16) José Antonio Paganella Boschi, “A sentença penal”, Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, n. 05/2002.
Rômulo de Andrade Moreira é promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do Ministério Público do Estado da Bahia. Ex-assessor especial do procurador-geral de Justiça e ex-procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-Unifacs na graduação e na pós-graduação. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Unifacs (Curso coordenado pelo Professor Calmon de Passos). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da Unifacs. Membro da Association Internationale de Droit Penal, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Autor das obras “Direito Processual Penal”, Salvador: JusPodivm, 2007; “Juizados Especiais Criminais”, Salvador: JusPodivm, 2007 e “Estudos de Direito Processual Penal”, São Paulo: BH Editora, 2006. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia, da Faculdade Jorge Amado e do Curso JusPodivm.