O servidor de Estado

Enquanto alguém não nos esclarecer essa questão, vamos ocupando a inteligência e afinando instrumento: durante o processo de institucionalização do Estado, o governo representativo do poder teria atraído especialistas para os diferentes setores da administração pública, visando a conformar e estabilizar sua superestrutura jurídico-política e técnica. Isso são favas contadas.

Comissionados executivos assumiam diretamente o encargo de executar planos e ordens, podendo ser designados por períodos, mandatos ou “graças” sem data marcada. Os demais faziam carreira funcionalista dentro de uma hierarquia político-administrativa, mais política do que técnica, mas sem renunciar ao objetivo de alcançar eficiência.

O governo brasileiro está agora preso em dificuldades maiores para explicitar o que pretende fazer com o Estado. Preservado o regime capitalista que nos domestica, quais os limites das ações de governo e da iniciativa privada (e neles, das “agências reguladoras” montadas pelo oportunismo e corrupção neoliberal)?

Sabemos que a ação do governo só pode ser vista e medida através da operação de seus funcionários (“os instrumentos ou braços do poder”) – esses elementos da burocracia que tendem a se confundir com o poder público, embora apenas suas funções positivas e um serviço público visível possam fazer a sua convalidação de “coisa pública” ou respublicana.

Todavia, é de convenção que o poder pertence à “hierarquia de valores”, ao “justo para todos”, à “equanimidade social”. E, se não for por uma homologação divina ou magia utópica, quem governa será transitório e estará sujeito a sanções populares.

O Brasil vem experimentando momentos “democratizantes” em que o recrutamento para o serviço público se faz pelo híbrido: concurso público e nomeação por privilégio. Nos últimos tempos a “confiança política” prossegue leiloando cargos públicos para os consócios do “partido no poder”: os cargos diretivos em “comissão”. E assim é a escolha dos “comissionados” ou “dirigentes” de serviços e repartições, diretorias, delegacias, secretarias, juizado de contas; e também, para um misto de lista tríplice: os membros dos colegiados de Justiça e dos altos tribunais. E todos, embora sem origem na estrutura funcional, passam a ter comandos, assumindo parcela de poder.

Enquanto, as nomeações como acerto de família e/ou retribuição de clã corporativo, mais presentes no Judiciário e no Legislativo do que nos cargos em comissão do Executivo, são resquícios da herança senhorial; de pessoas que dizem “ser o próprio Estado”.

Em processos de reorganização estatal, como está ocorrendo, é importante analisar e avaliar a presença e a ação dos “comandos políticos” na estrutura do Estado e do governo. E, afinal, decidir-se em substância: se o poder pertence ao Estado-geral, quanto de “comissionado” ou “gratificado” ou de servidor de carreira deve ser resguardado e/ou destacado porque representaria o núcleo mesmo da “coisa pública” da res publica.

Entretanto, acrescentemos um complicador: Um cientista político declarou que existem “partidos que nascem para o mercado” e “partidos que nascem para alguma outra coisa” (que se supõe queria ali dizer Estado), que talvez nem seja de classe social e de categorias produtivas; apenas de hierarquia burocrática… E o fez retomando uma “zoeira” que alguns pecebistas soltaram “na praça” quando viram o nascimento de um partido operário (PT) ocupando o vazio histórico por eles não efetivamente ocupado desde 1922; melhor, vazio no setor trabalhista não liderado desde notadamente a década de 50 – quando o crescimento das massas urbanas e do movimento orgânico dos trabalhadores mostrava enormes resistências para se integrar através de socialistas e comunistas, e faziam opção pelo trabalhismo, tipo PTB, ou pelo solidarismo cristão nascente.

Bem… reassumindo uma campanha de verrinas e apodos, assoalhadas principalmente pelo prestismo, Luiz Werneck Vianna, professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro em entrevista a Valor Econômico, acusou o PT de ser “uma versão radicalizada do PSDB” ao levar ao Congresso Nacional sua proposta de reforma da Previdência, “coisas típicas de um partido que nasceu de costas para o Estado”.

Então ele quer conduzir-nos à idéia alternativa: Seria preciso um partido de Estado? Bingo! A assunção e uso do aparelho de Estado é o que a sociedade precisa até que possa descartá-lo; se puder. Porém, quem seria a sociedade que representa e modifica a sociedade?

Como ele ficou sabendo, e nós também, que os dirigentes do PT encontraram dificuldades políticas para analisar e avaliar o papel do Estado (a ser, presumo, superado historicamente) e sua representação social, tornou-se logo patenteado que os estudos então feitos sobre Estado e sociedade, Estado e república, Estado e revolução, Estado e comunidades, Estado e partido, liberdades públicas e individuais, sistemas políticos e democracias, etc. não devem ter levado luz nem aos liberal-socialistas nem a muitos socialistas radicais.

Se não for exagero, a escuridão permaneceu em todos os partidos com sua limitada práxis, sem lograr romper trevas nem idiossincrasias.

É claro que o professor estudou e sentiu e/ou participou das tentativas políticas, variações e fracassos do “comunismo” de L.C. Prestes e do Komintern após a II Grande Guerra até o “redirecionamento” da nomenclatura soviética com Nikita Kruschew, o “resgate do PCURSS” por Leonid Breznev e, ao fim, o “termidor” capitalista de Gorbatchov. E, como nós, aqui, acompanhou os passos da resistência operária à ditadura militar e viu a polarização democrático-popular que formou o Partido dos Trabalhadores.

E fixou atenção na convergência política do renascimento sindical, metalúrgico especialmente, composta de “cristãos progressistas”, democratas radicais, ex-militantes comunistas e socialistas de várias tendências, para representar o campo do trabalho no processo político de redemocratização brasileira.

Todavia, que estaria o cientista político e professor universitário lecionando sobre política? Não sobre política geral, que nos encanta mas confunde, mas sobre a práxis política das classes trabalhadoras? Suas profligações engrossam a grei do ressentimento antioperário, antitrabalhista e anti-reformas do Estado brasileiro. Sob o signo de sua “revolução vencida”, erige uma sutil contra-revolução intelectual dos desiludidos. E não foi à-toa o ressurgimento do nacional-populismo caboclo, soldando Luiz Carlos Prestes a Leonel de Moura Brizolla.

Walmor Marcellino é escritor e jornalista.

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