O retrocesso do STF frente ao direito constitucional ao acesso a medicamentos

O Supremo Tribunal Federal, através de sua presidente, a ministra Ellen Gracie, emitiu decisão, não definitiva, no processo de Suspensão de Tutela Antecipada n.º 91, no sentido de que o acesso a medicamentos, inserido no direito à saúde, protegido pela Constituição Federal, envolve apenas os medicamentos que se encontram na lista de medicamentos essenciais do Ministério da Saúde Sistema Único de Saúde. Nesta seara algumas observações devem ser feitas diante da relevância da decisão e do fato de ter sido emitida pelo órgão máximo de proteção dos direitos humanos no Brasil.

Primeiro: a fundamentação da decisão considerou predominantemente o artigo 196 da Constituição Federal. Contudo, além desse dispositivo, tem-se, com maior relevância, o artigo 6.º, o qual estabelece a saúde como direito fundamental, do tipo social, de eficácia plena e protegida pela progressividade. Este dispositivo dirige-se prioritariamente ao Poder Judiciário, eis que a este cabe a interpretação e aplicação da norma constitucional nos termos da própria hermenêutica constitucional. O artigo 196, por sua vez, versa sobre a programaticidade do direito à saúde, ou seja, como o Estado, como agente político, deve agir na esfera preventiva (antes da necessidade da tutela do Poder Judiciário), no sentido de prestar a saúde dentro de uma realidade orçamentária e temporária.

Segundo: em virtude do parágrafo 2.º, do artigo 5.º, da Constituição Federal, todos os direitos devem ser interpretados de acordo com a progressividade, ou seja, são irredutíveis, já que buscam a realização e proteção dos interesses da sociedade o bem comum. Desta forma, os conceitos inseridos na Constituição não podem ser interpretados de forma a serem reduzidos. Esta sistemática existe em virtude da proteção que a ordem internacional construiu em benefício ao direito internacional dos direitos humanos, o qual absolutamente incorporado pelo Constituinte de 1988. Desta forma, se o Constituinte estabelece que a saúde é direito fundamental, do tipo social, de eficácia plena e com conceito progressivo, não cabe ao Poder Judiciário alterar este entendimento.

Terceiro: a Constituição estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Em momento algum estabelece um conceito taxativo e nem mesmo enumerativo do que seja saúde. Desta forma, conjugando com a progressividade, tem-se que saúde envolve todos os conceitos que busquem prevenir, manter e restabelecer o bem estar com dignidade do interessado. Em virtude deste raciocínio é que se pode concluir que envolve os meios necessários para o atendimento médico, hospitalar, acesso a medicamentos, acesso a tratamento específico e exames necessários para o diagnóstico e restabelecimento.

Quarto: a decisão indica que o conceito de saúde não pode envolver todo e qualquer medicamento, mas apenas os que estejam inclusos na lista emitida pelo Ministério da Saúde, através do Sistema Único de Saúde. Ocorre que esta orientação não é feita pela Constituição, mas por conclusão do Supremo com amparo na legislação infraconstitucional. Desta forma, absolutamente contrária à Constituição Federal, sendo passível de declaração de inconstitucionalidade e de questionamento junto à Corte Interamericana de Proteção aos Direitos Humanos.

Quinto: a indicada lista vinculada ao SUS encontra-se absolutamente desatualizada, além do que possui por fundamento as possibilidades orçamentárias, ou seja, afasta-se das diretrizes constitucionais no sentido da prevalência das necessidades sociais. A desatualização opera-se de dois modos. Primeiro por não acompanhar a amplitude das enfermidades existentes e segundo por não acompanhar as novas descobertas e técnicas médicas e da ciência. Observe-se que a Constituição não busca a satisfação do Estado, mas sim da sociedade. Neste aspecto, ao Poder Judiciário cabe somente a interpretação e aplicação das normas de acordo com a Carta Magna.

Sexto: a referida decisão foi emitida no mesmo período em que a União publicou a Portaria n.º 886, de 25 de abril de 2007, que constitui o primeiro passo para o licenciamento compulsório do medicamento efavirenz, direcionado aos portadores do HIV. Demonstra, desta forma, que uma esfera, em sua atuação preventiva, em obediência ao artigo 6.º e 196, acompanha as diretrizes da Constituição; enquanto que o Supremo Tribunal Federal, através de sua presidência, cria uma limitação ao conceito de saúde em total desencontro a proteção internacional aos direitos humanos e a Constituição Federal.

Necessário que a análise seja feita em conformidade com as diretrizes da Constituição e que seja feita de modo sistemático, ou seja, os dispositivos devem ser conjugados, desta forma, o artigo 196 não deve ser observado isoladamente, mas com o artigo 6.º. Além do que, questão orçamentária deve ser objeto de preocupação do Estado como agente político de atuação preventiva.

Patrícia Luciane de Carvalho é advogada, professora de Direito Internacional, presidente do Instituto do Direito da Propriedade Intelectual e Desenvolvimento, autora do Joint Venture Uma Visão Econômica-Jurídica para o Desenvolvimento Empresarial e coordenadora da obra Propriedade Intelectual Estudos em Homenagem à Professora Maristela Basso. patriciacarvalho@patriciacarvalho.adv.br

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