A lei ora em comentário, apesar do número reduzidíssimo de artigos e ainda os inúmeros vetos, talvez seja a norma processual penal que criou o maior número de dificuldades na sua interpretação, especialmente em vista dos erros grosseiros nos termos jurídicos utilizados, aliado ainda ao fato de que em diversas oportunidades criou figura nova no nosso ordenamento jurídico sem conceituá-la ou indicar onde, quando e a quem ela tem aplicação.
O inc. IV do art. 37 não é exceção ao tratar de questão relacionada com a disponibilidade da ação penal pelo representante do parquet. Da sua leitura não é possível depreender o que pretendeu o legislador. Nele está previsto que o Ministério Público pode deixar, justificadamente, de propor ação penal contra os agentes ou partícipes de delitos. Como dito, quando ele pode deixar de propor a ação penal? Contra quem ele pode deixar de oferecer denúncia? Nem este artigo nem o capítulo a ele relacionados dão uma resposta.
Através da leitura dos dispositivos legais desta lei que estão em vigor, também não há correspondência entre eles e a previsão ora em comentário.
Também com outras leis não encontramos interligação, onde a mais próxima seria o art. 89 da Lei 9.099/95, mas neste caso o Ministério Público oferece denúncia e ao mesmo tempo faz proposta para suspensão do processo.
Não se pode falar em negativa de propositura da ação penal em razão da aplicação do princípio da insignificância porque o Presidente da República vetou o art. 32, caput, o capítulo que autorizava a aplicação desta benesse legal aos crimes de tóxico.
Após a exclusão de todas estas hipóteses, resta somente uma. Assim mesmo somente forçando a interpretação, inclusive sendo necessária uma mudança no sentido dos termos técnicos utilizados pelo legislador. Cuida-se da previsão do art. 32, § 2º, o qual prevê o sobrestamento do processo quando houver colaboração espontânea do acusado, revelando a existência de organização criminosa, permitindo a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, justificado o acordo, contribuir para os interesses da Justiça. Veja-se que a negativa do Ministério Público no oferecimento da denúncia, tecnicamente não tem relação com sobrestamento do processo.
Vencidas estas dificuldades de interpretação, inclusive se considerarmos de plena eficácia o art. 32, § 2.º, teremos ainda outros obstáculos a serem transpostos. Cuida-se de sobrestamento ou arquivamento do processo? É indispensável esta diferenciação, porque cada uma destas providências jurídicas tem conseqüência própria, sendo elas totalmente distintas entre si.
Ao nosso ver, em hipótese alguma pode ser considerado sobrestamento do processo, e dentre inúmeras outras razões jurídicas podemos citar as seguintes: a) não havendo denúncia, não há processo, portanto não existe processo para ser sobrestado; b) o sobrestamento de processo somente pode ocorrer por tempo determinado, no presente caso não há fixação de prazo; c) por tratar-se de exceção, o processo somente pode ser suspenso quando houver uma causa razoável que justifique, o que não é a hipótese etc.
Cremos que a interpretação mais razoável juridicamente seja a equiparação ao arquivamento. Assim, presentes os requisitos do art. 32, § 2.º da nova Lei de Tóxicos, o Ministério Público deixará de propor ação penal, requerendo o arquivamento da persecução criminal, incidindo aí todos os fundamentos e efeitos jurídicos relacionados ao citado arquivamento dos autos de inquérito, peças ou informações.
Ressalte-se novamente que este benefício não pode ser concedido de ofício pelo juiz.
Por outro lado, tratando-se de direito público subjetivo do indiciado em receber tal benefício quando preencher todos os requisitos legais, não pode a proposta de acordo ficar unilateralmente centrada nas mãos do Ministério Público para propô-lo ou não, ao seu livre arbítrio, e sem que o juiz ou o acusado possam valer-se de recurso para discutir a regularidade ou legalidade desta posição.
Desta forma, no caso de o indiciado requerer a aplicação deste benefício, e houver negativa a este pedido, deverá o Ministério Público motivadamente dizer por que deixa de propor o acordo. Dizemos que neste caso, deve o juiz decidir o litígio, e não aplicar o art. 28 do Código de Processo Penal como vêm decidindo os nossos Tribunais Superiores nos casos em que há negativa do parquet em oferecer proposta de acordo nos termos da Lei 9.099/95, art. 89.
Assim, a situação de negativa de proposta para acordo, e de conseqüência o arquivamento do inquérito, não pode ser equiparado ao pedido de arquivamento do feito pelo Ministério Público com discordância do juiz, para o qual aplica-se o disposto no art. 28 do Código de Processo Penal.
No caso de o Ministério Público negar-se a participar do acordo, o qual tem como conseqüência o arquivamento do inquérito, estará propondo ação penal com oferecimento da denúncia. Por isso caberá ao juiz decidir se recebe a denúncia ou se arquiva o inquérito. Assim, no caso de o juiz acatar o pedido do indiciado, estará deixando de receber a denúncia, com arquivamento do inquérito. Neste caso caberá ao Ministério Público valer-se do recurso em sentido estrito para insurgir-se contra a decisão do juiz.
Assim, somente quando o Ministério Público deixar de oferecer denúncia tendo como fundamento acordo firmado com o indiciado, nos moldes do art. 32, § 2.º, é que será o caso de aplicação do art. 28 do Código de Processo Penal, porque juridicamente o parquet estará indiretamente requerendo o arquivamento do inquérito. Já, quando negar-se a fazer proposta de acordo, insistindo no oferecimento da denúncia, no caso de o juiz decidir contra a sua pretensão, estará deixando de receber a denúncia, sendo cabível o recurso em sentido estrito previsto no art. 581, inc. I, do Código de Processo Penal.
Finalmente, no caso de o Ministério Público negar-se a fazer proposta de acordo e o juiz julgar improcedente pedido do indiciado objetivando a aplicação da benesse legal ora em debate, o único caminho que lhe resta será a impetração de habeas corpus.
Jorge Vicente Silva
é pós-graduado em Pedagogia a nível superior, pela PUC/PR e especialista em Direito Processual Penal, também pela PUC/PR, e autor de diversos artigos e livros, inclusive já na 2″ Edição o Livro “Tóxicos” – Manual Prático – Respostas às dúvidas surgidas com a Lei n.º 10.409/02.