O que mudou com a nova Lei de Tóxicos – Parte IX

Do “Sobrestamento do Processo”

O denominado pelo legislador de “sobrestamento do processo” previsto no art. 32, § 2.º, está contaminado de erros técnicos jurídicos e de difícil aplicação na prática. Por outro lado, deixa de regular questões indispensáveis, como v.g., a atuação do juiz no “acordo” facultado às partes. Assim, somente através de uma interpretação sistemática de todas as normas torna-se possível conduzir um procedimento nesses moldes objetivando aplicar o dispositivo legal ora em comentário.

A citada norma prevê duas benesses legais completamente distintas. Uma, o sobrestamento do processo. Outra, a redução da pena.

Inicialmente há que se observar que o legislador faz expressa referência a “sobrestamento do processo”, mas ele não quis dizer isso. O que ele pretendeu dizer foi que o Ministério Público, havendo o acordo, pode “deixar, justificadamente, de propor ação penal”, conforme depreende-se do art. 37, inc. IV da lei ora em comentário.

Assim, para compreender o que pretendeu nosso legislador fazer, há que se interpretar conjuntamente o art. 32, § 2.º e o art. 37, inc. IV.

Por outro lado, não é possível tecnicamente falar-se em “sobrestamento do processo” porque esse próprio dispositivo legal somente é aplicável antes do oferecimento da denúncia. Portanto, ainda não há processo. Assim, não há o que sobrestar. Essa normatização é de uma confusão em todos os sentidos; inclusive para chegar à conclusão atrás posta, no sentido de que o § 2.º, do art. 32 somente se aplica antes do recebimento da denúncia, há necessidade de se aferir a disposição do § 3.º do citado artigo, o qual diz que, no caso de a colaboração ocorrer após o oferecimento da denúncia, a benesse a ser aplicada é a diminuição da pena ou perdão judicial. Assim, por exclusão conclui-se que o dispositivo em comentário está regulando matérias relacionadas somente com a fase policial.

Diante da complexidade na interpretação pode-se, inclusive, também dizer que a contido na norma prevê que o sobrestamento do processo deverá ser feito até que se prendam os demais autores ou co-autores.

No entanto, de nenhuma forma o delator livrar-se-á do processo, pois a “isenção de pena” deve ser aplicada somente após a condenação do réu, em sentença.

Portanto, a previsão do sobrestamento do processo somente serviria para impedir o prosseguimento da persecução criminal em relação ao delator, mas não a colheita de prova, inclusive para aferir a veracidade das informações pelo acusado prestadas.

Apesar do termo técnico equivocado, porque antes da denúncia não há processo, e portanto, não se pode sobrestá-lo, é bastante razoável essa interpretação, a fim de possibilitar que seja checada a veracidade das informações dadas pelo acusado a título de colaboração para o processo, assim como a sua importância, sob pena desse instituto ficar exposto a “malandragem”, onde até mesmo informações, sutilmente desvirtuando a persecução criminal, sirvam para beneficiar infratores que na verdade nada delataram.

O aplicador da lei penal não pode ser ingênuo, porque os infratores normalmente medem todas as possibilidades, inclusive para beneficiarem-se de suas mentiras. Por isso, não se pode aceitar de pleno uma delação para o fim de arquivar a persecução criminal contra o delator, sem antes constatar a sua veracidade e importância para o processo ou sociedade.

Também não faz diferenciação aos casos onde o acordo versará sobre o “sobrestamento do processo” e aqueles onde haverá “diminuição da pena”. Portanto, não há um norte a ser seguido para enquadrar as hipóteses numa ou noutra benesse legal. Sobre essa matéria nada foi dito ou regulado, não havendo sequer uma pista a informar a pretensão do legislador.

O legislador previu “a redução da pena”, entretanto não fixou patamar algum. Assim, juridicamente, é possível a redução de até noventa e nove vírgula nove por cento da pena, o que implica praticamente numa isenção de pena por via indireta.

Cuidando-se de instituto novo no nosso ordenamento jurídico (delação premiada), o intérprete não tem no que socorrer-se para solucionar essa dúvida. Fica, portanto, ao livre arbítrio praticado com muito bom senso e responsabilidade no “acordo” entre o indiciado, Ministério Público e juiz, para, no caso concreto, poder aplicar essa benesse legal.

Veja-se que a falta de indicação dos fatos, circunstâncias, etc., quando se aplicaria o sobrestamento do processo ou a diminuição da pena, assim como o quantum dessa mitigação, gerará incertezas aos aplicadores desse direito, pois não existe um parâmetro a ser seguido. Por outro lado, casos iguais receberão tratamentos diferenciados, conforme for mais liberal ou conservador o aplicador da norma (no caso juiz e Ministério Público). E nesse caso não vejo como se possa fugir do quebramento do princípio da isonomia.

Por outro lado, entendemos que a aplicação dessa benesse não é uma faculdade do juiz, mas sim, direito público subjetivo do acusado quando preencher os requisitos para concessão do benefício. Portanto, não poderá fugir de enfrentar essa matéria, e quando ela lhe for apresentada, terá que decidir.

Da leitura do dispositivo legal em comentário, dá-se a impressão de que o indiciado e o Ministério Público entabularão um “acordo”, e a questão fica resolvida, sem a necessidade de um pronunciamento judicial sobre essa transação. Não é bem isso que deve ocorrer. Diz o art. 251 do Código de Processo Penal que “ao juiz incumbirá prover à regularidade do processo e manter a ordem no curso dos respectivos atos”.

Portanto, apesar de a lei em comentário não dar solução às hipóteses em que o juiz discordar da negativa de propositura de ação penal contra agentes infratores ou partícipes de delitos, certamente o julgador não fica acorrentado ao entendimento posto pelo representante do Ministério Público.

Pelas características técnico-jurídicas do não-oferecimento da denúncia, ele equivale ao pedido de arquivamento do inquérito policial. Assim, no caso de o juiz não concordar com essa pretensão do órgão da acusação, deverá valer-se do art. 28 do Código de Processo Penal.

Ademais, mesmo com a maior da boa vontade não haveria como excluir o juiz de atuar nesta relação jurídica (acordo), porque, no caso de aplicação da benesse na modalidade de diminuição da pena, primeiro terá que haver uma sentença condenatória, cabendo ao julgador aplicar as causas de diminuição da reprimenda (CP, art. 68).

Para haver o acordo entre indiciado e Ministério Público, há necessidade que o acusado “espontaneamente” colabore com a Justiça. Ao nosso ver não há necessidade que tenha havido “arrependimento”, basta que a colaboração seja espontânea e alcance os objetivos pretendidos pela lei. Essa espontaneidade também não precisa ser aquela pura, levada a efeito sem nenhum outro motivo. Pode ser aquela em que o infrator colabora com a Justiça somente porque será beneficiado. Isto é, com segundas intenções.

Veja-se que, para o indiciado ter direito ao benefício legal, é necessário também que revele a existência de organização criminosa, permitindo a prisão dos seus componentes ou a apreensão da substância tóxica, ou possa “de qualquer modo contribuir para os interesses da Justiça”.

Assim, uma vez revelada a existência da organização criminosa, para que o indiciado faça jus a essa benesse legal, basta que seja preso um ou mais dos seus integrantes. Essa conduta tipicamente podemos chamar de delação premiada, onde o infrator de um crime depõe contra outros co-autores.

Já se encontram nas livrarias livro de nossa autoria sobre essa matéria, intitulado: TÓXICOS – Alterações da Lei n.º 10.409/02 – Aspectos Penal e Processual Penal, publicado pela Editora Juruá. e-mail: editora@jurua.com.br . Telefone (0..41)352-3900.

Jorge Vicente Silva

é pós-graduado em Pedagogia em nível superior, pela PUCPR, especializando em Direito Processual Penal pela PUCPR, e autor dos livros: Execução Penal, Estelionato e Outras Fraudes, Homicídio Doloso, Apelação Crime, Liberdade Provisória com e sem Fiança, Código Penal com Notas Remissivas, e acaba de publicar livro intitulado “Tóxicos”, além de outros trabalhos publicados pela Editora Juruá.

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