Dentre os muitos desencontros que se tem apontado no texto do novo Código civil, há um artigo que me causou verdadeira perturbação, perplexidade, talvez, e me levou a refletir sobre o que se pode esperar do Direito de Família do novo Código.

É o artigo 1636, que regula o poder familiar com relação ao pai ou da mãe que contrai novas núpcias ou estabelece união estável, entre outras hipóteses, verbis: “O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro. Parágrafo único. Igual preceito ao estabelecido neste artigo aplica-se ao pai ou à mãe solteiros que casarem ou estabelecerem união estável”.

Para que se possa compreender os motivos que me levaram a tal, necessária uma rápida retrospectiva ao direito anterior, do qual decorre tal norma.(1) A matéria vinha regulada no artigo 393, do Código Civil de 1916, cuja redação original era a seguinte: “A mãe, que contrai novas núpcias, perde, quando aos filhos do leito anterior, os direitos do pátrio poder (art. 329); mas, enviuvando, os recupera”.

Na lição de Clóvis Bevilaqua, não era em ódio às novas núpcias que o Código retirava o pátrio poder à viúva que, tendo filho de anterior matrimônio, contraía outro casamento. O fazia porque a viúva, pelo novo casamento, recaia em incapacidade, bem como em atenção a possíveis conflitos que pudessem surgir entre os interesses das duas famílias. Incapaz, observou Bevilaqua, “falta-lhe a liberdade de ação precisa para gerir a fazenda dos filhos; tendo de atender à nova prole e aos cuidados domésticos, poderia prejudicar os filhos do leito anterior, e, consagrando-se a estes, talvez não cumprisse ou parecesse não cumprir, exatamente, os deveres de esposa e dona de casa”(2)

Contudo, a Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962 – Estatuto da Mulher Casada, que se constituiu no principal marco da emancipação jurídica feminina do século passado, por ter estabelecido a plena capacidade de fato da mulher casada e também reconhecido a ela a titularidade do pátrio poder, deu nova redação ao artigo 393, nos seguintes termos: “A mãe que contrai novas núpcias não perde, quanto aos filhos de leito anterior, os direitos ao pátrio poder, exercendo-os sem qualquer interferência do marido”.

Conquistava, então, a mulher, junto com a capacidade, o direito à ostentar o pátrio poder, ainda que não em sua plenitude, pois embora o reconhecimento da titularidade, no exercício seu papel era apenas de colaboração com o marido, o que a colocava em posição secundária, não principal, de coadjuvante do marido na tarefa de criar e educar os filhos.

Esta situação permaneceu em vigor até a promulgação da Constituição da República do Brasil, em 1988, que igualou em direitos e obrigações o homem e a mulher, no casamento ou fora dele,(3) bem como que estabeleceu a igualdade de direitos entre todos os filhos,(4) independentemente da origem da filiação. Diante disso, mudou substancialmente a posição jurídica da mulher no casamento, também o enfoque da figura do pátrio poder. Esse, de uma prerrogativa conferida aos pais, passou a constituir-se num direito do filho, e de todo filho, havido ou não da relação de casamento, a ser assegurado, inclusive, com absoluta prioridade sobre qualquer outro direito.

Neste contexto, então, esvaziou-se o objeto da norma contida no artigo 393, pois não havia mais que se falar em perda de direitos de pátrio poder à mãe que contraísse novas núpcias. O pátrio poder desvinculava-se, em definitivo, do estado dos pais, passando a ser reconhecido a ambos, em absoluta igualdade de condições, e para ser exercido no interesse e em benefício do filho. Não era mais direito dos pais, e sim dever, de todo pai e de toda mãe, independentemente da relação jurídica existente entre eles.

E sendo assim, por óbvio, restou de todo superada qualquer necessidade de disciplinar o pátrio poder da mulher que contraísse novo matrimônio. Não havia, como não há, espaço algum para se conceber que pudesse ela perder qualquer “direito”, ou melhor, que o filho pudesse perder qualquer direito protetivo em virtude de novo casamento de sua mãe.

Embora isso, que ao meu ver é de clareza meridiana e que se impõe de forma inarredável em virtude da disciplina constitucional, veio o artigo 1636, do novo Código Civil, não somente assegurando à mãe que contrai novas núpcias ou estabelece união estável os direitos ao poder familiar, como também ao pai.

E é exatamente aí que reside minha perplexidade. Seja na reedição da norma, seja na inserção da figura do pai na hipótese legal. Veja-se que a matéria disciplinada no artigo 393, do Código Civil, tinha sentido num ordenamento jurídico em que não se reconhecia a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, e nem entre os filhos, tendo, então, o objetivo de preservar o pátrio poder no novo casamento da mulher, que era restringido justamente pela desigualdade de direitos havida no casamento. No entanto, hoje não tem qualquer razão de existir. Seu objeto é seguramente vazio. A hipótese que regula não tem qualquer fundamento de validade no direito vigente.

E não bastasse isso, a regra foi também estendida ao pai, como se o direito contido na norma do artigo 393 fosse uma prerrogativa que o legislador anterior reconhecera somente à mulher, em detrimento do homem, quando, na verdade, se referia a um direito que nunca foi questionado com relação ao homem, mas que somente à mulher não se reconhecia, e por isso a necessidade da norma do artigo 393.(5)

Ao meu ver, se afigura inconcebível o legislador ter estendido tal direito também ao homem, como que invocando o princípio da igualdade de sexos, quando, na verdade, a norma do artigo 393 deveria tão somente ser esquecida, jamais repetida ou reeditada, ante a inexistência da situação jurídica discriminatória que a ensejou e justificava sua existência.

Sem sentido, também, se ter feito incluir o estabelecimento de união estável ou casamento de pais solteiros, pois se não há mais que se questionar que o pátrio poder não esteja mais vinculado ao estado civil dos pais, com muito mais razão o poder familiar, que se quer novo e inspirado nos mais atuais princípios do Direito da Infância e da Juventude.

Assim, então, embora as conclusões se refiram a um artigo apenas, penso que não se deve esperar muito do novo Código Civil. Priorizou-se, antes, a preservação do Código vigente, com adaptação superficial de princípios constitucionais e algumas mudanças terminológicas, ao invés de se promover modificação de fundo, seguindo as próprias diretrizes propostas no início dos trabalhos legislativos, entre as quais a de impossibilidade de mera revisão do atual e a de alteração geral do atual no que se refere a certos valores considerados essenciais.(6)

Com efeito, não tenho receio em concluir que o legislador do novo Código não se apercebeu da profunda reformulação dos valores jurídicos e sociais que ocorreu na sociedade brasileira desde a edição do Código de Bevilaqua, que estabeleceram premissas absolutamente diversas das encontradas no início do século XX,(7) oferecendo uma lei verdadeiramente dissociada da realidade. Como disse Caio Mario da Silva Pereira, e com especial acerto, o texto reflete “nítido divórcio em relação ao progresso da sociedade, em troca do comodismo das soluções passadistas”.(8)

Será necessário, portanto, ter especial cautela na sua interpretação e aplicação. Não bastará apenas um reajuste dos processos hermenêuticos, como preconizou Miguel Reale,(9) senão que o trabalho será muito mais complexo, uma vez que diante de cada norma se terá, antes, que fazer cuidadosa análise de seu fundamento de validade à luz dos preceitos de Direito de família insculpidos na Constituição da República, para, depois então, indagar-se e procurar-se seu sentido e alcance.

NOTAS

(1) TAPAI, Giselle de Melo Braga (Coord). Novo código civil brasileiro / lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 : estudo comparativo com o código civil de 1916. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002. p. 261.

(2) BEVILAQUA, Clóvis. Código civil dos estados unidos do Brasil. 12.ed. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1960. v. II. p. 296.

(3) Artigo 5o, inciso I, combinado com o artigo 226, §5o.

(4) No artigo 227, § 6o, que se repete no artigo 1596, do novo Código Civil.

(5) Aliás, assim foi a manifestação do Deputado Ricardo Fiúza, quando apreciou a emenda nº 246, do Senado Federal, ao projeto de lei, verbis: “A nova redação proposta pela Emenda além de adequar o texto da Câmara ao tratamento constitucional, do qual decorre a expressão “poder familiar” como inerente ao princípio de igualdade dos cônjuges, inclui no parágrafo único menção ao pai solteiro como sujeito igualmente de direito versado no “caput” do dispositivo” (Pareceres conclusivos sobre as emendas de nº 1 à 331 do Senado Federal ao Projeto de lei nº 634-D, de 1975. Brasília, Secretaria Especial de Editoração e Publicações do Senado Federal, nov, 2000. p. 447 – sem grifo no original).

(6) Que seriam duas das sete apontadas por Miguel Reale, que teriam ficado assentes na elaboração do anteprojeto (“Visão geral do novo Código civil”. www.miguelreale.com.br, pesquisada em 23.03.2002).

(7) VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil : direito de família. São Paulo : Atlas, 2001. p. 20

(8) Em DIAS, Maria Berenice e Outro. Direito de família e o novo código civil. Belo Horizonte : Del Rey, 2002. p. V. Anote-se apenas que ainda que o comentário do autor tenha sido feito em relação ao texto aprovado em 15 de agosto de 2001, que não é o mesmo da Lei nº 10.406/02, as modificações posteriores foram pequenas e de âmbito restrito, de modo que se reputa perfeitamente aplicável o comentário ao texto atual.

(9) Em “O sentido do novo código civil”. Espaço Aberto, ?, mar, 2002.

Denise Damo Comel é magistrada, professora assistente da Universidade Estadual de Ponta Grossa, professora da Escola da Magistratura do Paraná – Núcleo de Cascavel.

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