O processo, de Franz Kafka

O presente artigo é fruto de estudos realizados no grupo de iniciação científica coordenado pelo professor dotor Luiz Eduardo Gunther, no Unicuritiba, de temática relacionada à tutela dos direitos de personalidade e os seus efeitos limitadores na constituição da prova judiciária.

Interessado na análise da vida e obra de Franz Kafka, nascido em 1883 em Praga, Áustria-Hungria, atual República Tcheca, um dos maiores autores da literatura alemã, foquei-me na análise de Processo (KAFKA, Franz. O Processo. 2.ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2001). O referido romance conta a história de Josef K., processado e condenado por um crime que ignora. Repleto de simbolismos e retratando situações verdadeiramente absurdas kafkanianas , a obra caracteriza-se por apresentar críticas ao comportamento humano e à Justiça, antecipando-se aos regimes totalitários de direita que seriam instituídos nas décadas seguintes na Europa.

Opto, aqui, por sintetizar o enredo do romance, chamando a atenção aos pontos principais, de modo a permitir uma posterior análise crítica.

O personagem principal, como dito, é o bancário Josef K. Um dia ele acorda, pela manhã, na pensão onde mora, e encontra dois policiais que cumpririam uma ordem de prisão contra K. Exige explicações, mas os oficiais aclaram que estavam apenas cumprindo ordens. Os oficiais sugerem pretender receber suborno, que consistiria em serem presenteados com as roupas e pijamas de K. O personagem principal mostra sua indignação com a situação e é levado a uma audiência com o Inspetor, audiência esta que ocorre na mesma pensão, em um quarto ao lado.

É informado, por telefone, que seria ouvido em uma audiência no domingo. Lá é recebido por uma mulher que o conduz à sala onde se encontram muitos homens. É o Tribunal. K. inicia, então, um discurso em que expõe seus protestos contra o fato de estar “detido”. Afirma que não reconhece as pessoas ali presentes como autoridades, critica o comportamento daqueles ligados à Justiça e externa não estar entendendo como pode ser vigiado por aqueles homens que qualifica como inescrupulosos e corruptos. Cenas absurdas além do fato de estar sendo ouvido num domingo se passam, tais como a entrada de uma mulher no salão de audiência e o fato dessa mulher ser seduzida por um jovem que lá se encontrava. Some-se a isto o posterior contato do personagem com livros repletos de fotos pornográficas, supostamente pertencentes aos magistrados. A mesma mulher se oferece a K., dando-lhe a entender que se aceitasse um relacionamento poderia favorecer-lhe no processo. É assim com todos os envolvidos com a justiça, sempre querendo vender suas supostas influências sobre os juízes. Isto ocorre com o advogado, Dr. Huld, sua assistente-acompanhante, e com o retratista da Justiça, Titorelli. O autor subtende, assim, certa promiscuidade na Justiça.

No que tange ao personagem retratista, este explica que K. tinha três caminhos a seguir. Teria a chance da absolvição real, pela qual todos os documentos desapareceriam e o processo seria arquivado; a aparente, onde se livraria da pena, mas os documentos permaneceriam, podendo ser utilizados novamente pelo Tribunal; e o adiamento indeterminado, quando o processo é interrompido. Aqui aparece o elemento probatório da história. A absolvição real representa, na verdade, a existência de provas da inocência e o atingimento da verdade real. E o autor deixa claro que jamais se conseguirá uma absolvição real. Ele o faz não apenas com intuito de demonstrar a imperfeição do sistema, mas também com caráter filosófico, pois já vivida e passada uma realidade, esta jamais conseguirá ser reconstituída no todo, em um processo judicial.

Em uma Catedral é interpelado por um sacerdote, exercente da função de capelão da prisão e, portanto, outro personagem relacionado à Justiça. Este lhe diz que deveria modificar sua atitude, uma vez que o veredicto vai sendo formado com o decorrer do processo e que até aquele momento, K. não tinha feito nada em seu favor. O sacerdote conta-lhe a história de uma pessoa que morre às portas da Justiça. Reitera-se a idéia de que a Jus,tiça é inatingível. Na véspera de seu aniversário, dois senhores chegam à casa de K. Carregaram-no pelos braços, levam-no a uma pedreira e lá golpeiam-no no coração com um punhal. A ele foi, então, imposta a pena de morte por um crime jamais informado.

Numa análise crítica é possível destacar que em meio a fatos surreais, o autor evidencia ser um absurdo que muitas daquelas situações, às vezes descritas como linguagem figurada, correspondam a situações cotidianas, existentes no meio forense, tais como: (a) órgãos judiciais mal estruturados e incapazes de atender, material e intelectualmente, de forma satisfatória, os jurisdicionados; (b) a negligência e a indiferença com que se tratam os litígios que, muitas vezes, representam a vida, a liberdade de uma pessoa; (c) o Judiciário e os juízes se fazem representar (nas pinturas descritas na obra) como Deuses, acima da compreensão e da razão dos homens comuns. Para se chegar a um órgão jurisdicional, no livro, o personagem tem sempre que subir longas escadas, indicando a posição de superioridade e de distância da Justiça em relação à população; (d) o excesso de serviço não permite que se analisem os argumentos expostos pelos advogados, tornando sua atuação, muitas vezes, inócua, como sugere a obra.

Isso tudo faz com que se crie uma atitude de repulsa pela Justiça. Não é outro o motivo pelo qual, repetidamente, a obra utiliza-se de figuras de linguagem como a presença de ratazanas, livros com fotos pornográficas e outras figuras completamente repugnantes presentes no ambiente forense do romance.

Há críticas, também, aos advogados e demais profissionais da justiça, como por exemplo, as constantes tentativas de enaltecer suas supostas amizades e relações pessoais com os juízes como forma tirar proveito dos jurisdicionados.

O acesso à Justiça e a efetividade da tutela jurisdicional são princípios violados pela sistemática judiciária descrita na obra, não longe da realidade atual. O Direito se vale de tecnicismos incompreensíveis para manter o jurisdicionado distante do conhecimento do trâmite de sua causa, necessitando de intermediários advogados, servidores da Justiça que prestam maus serviços, em órgãos maus estruturados. Destaca-se a seguinte passagem: “Era preciso não chamar a atenção. Era preciso procurar compreender que esse grande organismo da justiça era de certo modo eterno em suas flutuações, que se alguém pretendia mudar nele alguma coisa era como tirar-se ele próprio o solo de sob os seus pés e que ele mesmo é que se precipitava na queda enquanto o grande organismo, vendo-se apenas muito ligeiramente afetado por isso, conseguiria facilmente uma peça de reposição (sempre dentro de seu mesmo sistema) e permaneceria imutável se não acontecia que se tornava ainda mais fechado, ainda mais atento a tudo quanto acontecia, ainda mais severo, ainda pior” (p. 150).

A obra, portanto, não deixa de criticar todos aqueles que, conhecendo os problemas da Justiça, não fazem nada para reverter este quadro: os advogados, porque tem medo de sofrer represália; os juízes e promotores pelo medo de ter que admitir o próprio erro.

Luiz Gustavo de Andrade é advogado sócio do escritório Zornig, Andrade & Associados. Mestre em Direito e professor do Unicuritiba.

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