O problema em casa

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva comemorou sua primeira vitória no Congresso, ao computar 442 votos a favor (apenas 13 contra e 17 abstenções) da emenda constitucional que permite a regulamentação do sistema financeiro nacional. O projeto, de autoria do ex-senador José Serra, entre outras medidas, abre caminho para a autonomia do Banco Central e permite a regulamentação fatiada, por projetos de lei complementar, do artigo 192 da Constituição Federal, retirando do texto da Carta Magna o tabelamento dos juros, nos até aqui sempre irreais 12% ao ano. Terá que passar por nova votação na Câmara, em segundo turno.

Foi o primeiro grande embate (que nem aconteceu de verdade) parlamentar do governo Lula, sobre tema escolhido a dedo, com estratégia também adrede estudada. Mas o episódio, a despeito do que poderá vir a acontecer já na semana que vem, precisa ser analisado sob dois aspectos importantes, que transcendem os limites do projeto arquitetado pelo candidato derrotado por Lula nas últimas eleições: primeiro, a bancada petista, ou governista, votou a favor, mas fez questão de lavrar declaração de voto para dizer que é contra itens que a proposta de mudança constitucional encerra; segundo, a grande vitória atribuída a Lula custou o restabelecimento de uma prática que imaginávamos sepultada, por não ser condizente (pelo menos até aqui) com um governo petista: o “escambo cívico-democrático” ou – ironias à parte – a compra de votos em troca de cargos, praticado às escâncaras pelo ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu. Este, após acomodar desejos e pedidos de inúmeros parlamentares, gabava-se na noite de terça-feira de ter na manga mais de 400 votos… “ou não me chamo José Dirceu”.

Qual dos dois procedimentos será mais danoso ao Brasil e aos propósitos do próprio governo, é difícil dizer. À banda radical do PT assiste a atenuante de ter deixado claramente consignado o que pretende no futuro, como antecipando uma carta de princípios. É contra a autonomia do Banco Central e ponto final, enquanto Lula, pelo que disse e fez, é a favor desde a nomeação de Henrique Meirelles para dirigir a instituição. Ou pelo menos era em outros tempos, quando não estava preocupado em retirar do Estado brasileiro “instrumentos fundamentais para a condução da política econômica, monetária, creditícia e cambial”. Enquanto o PFL anuncia que tomará a iniciativa de propor objetivamente a autonomia do BC já nos próximos dias, ao governo e ao PT resta a certeza de que está com problema em casa.

A objetividade radical da ala esquerda do PT aumentará as atividades do balcão de negócios reinstalado no Planalto como forma de garantir as vontades do Executivo sobre outras vontades de integrantes do Legislativo. Dizia-se que essa forma franciscana (“é dando que se recebe”) de governar foi que tornou FHC prisioneiro de sua primeira barganha. Pois o governo Lula enveredou-se pelo mesmo caminho e dele dificilmente terá condições de desviar, mesmo que não pretenda a reeleição. Sabe-se que para muitos no Congresso o apelo de José Dirceu (“votem a favor do Brasil”) é apenas um recurso de retórica. Os grandes interesses do Brasil, faz tempo, vêm sendo confundidos com interesses pessoais ou, quando muito, grupais. E nem sempre valem mais que um cargo secundário num órgão – enquanto existirem vagos – de terceiro escalão.

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