O princípio da insignificância penal e a necessidade de cautela na sua consideração e aplicação

Conquanto não inserido textualmente na lei penal brasileira, reiteradamente juízes e tribunais têm admitido como excludente de tipicidade o princípio da insignificância em matéria criminal (1).

Antes de se mencionar os motivos por que entendemos que a deliberada adoção do princípio da insignificância, em sede de delitos patrimoniais, de forma precipitada e descriteriosa, pode traduzir-se em prática perigosa e não-recomendável, necessário se faz tecer algumas e poucas notas acerca da tipicidade penal e da natureza jurídica do instituto em comento.

O tipo penal é uma norma que descreve condutas criminosas em abstrato. Reflete o modelo legal de comportamento proibido. Ele descreve condutas, assinala e limita o injusto, apontando o caráter indiciário da ilicitude, consoante a teoria da ratio cognocendi, adotada pelo nosso sistema jurídico penal.

Tipicidade, ao seu turno, como elemento do fato típico – ao lado da conduta, do resultado e do nexo causal – traduz-se como sendo a perfeita adequação do ato praticado pelo agente ao fato definido como crime na lei penal.

O Princípio da Insignificância, inicialmente concebido por Claus Roxin (2), permite, em grande parte dos tipos incriminadores, excluir os danos de menor relevância, desde que comprovados o desvalor do dano, da ação e da culpabilidade do agente. Já os romanos, ao seu tempo, e com a sensibilidade jurídica ainda hoje presente, anunciaram o postulado de minimis nom curat praetor. Ou seja, as coisa insignificantes não devem ser consideradas.

Assim sendo, aqueles delitos de bagatela, como o furto ou dano de objeto de valor ínfimo (3), apropriação indébita ou peculato de ninharias, posse de substância entorpecente (4) incapaz até mesmo de produzir o “prazer” do seu consumo, (5), como no exemplo citado por Mirabete, são passíveis de sua aplicabilidade.

O Princípio da Insignificância caminha paralelo com o da lesividade, ou ofensividade, que preconiza não haver delito sem lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado. O direito penal é uma ciência que não pode ficar apegada exclusivamente aos princípios dos formuladores do passado, pois as exigências da sociedade moderna estão a indicar que a atualidade real e presente não mais se compadece com os rígidos paradigmas de política social de outrora, que não mais atendem o conjunto da sociedade, que prefere e clama pelo encarceramento apenas de criminosos perigosos e violentos, ou aqueles que praticam o denominado crime do colarinho branco, geralmente extremamente lesivos aos cofres públicos (6).

Mesmo em outras espécies delitivas, de cunho não-patrimonial, também se aplica tal orientação, conforme se vê da manifestação do então ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luiz Vicente Cernicchiaro, nos autos de recurso em habeas corpus nº 2.119-0: Haveria razão, interesse qualificado para punir-se exemplificativamente, a manicure que, no cortar a cutícula ferisse ligeiramente a mão da cliente? O mesmo se a cabeleireira ao secar os cabelos de uma senhora, superficialmente queimá-los ou provocar ligeira lesão corporal? …. Fisicamente, sem dúvida, houve resultado. Lesão corporal, nos dois exemplos. Normativamente, contudo, a conclusão é contrária, oposta. O Direito Penal só cuida das condutas que afetem significativamente o bem jurídico protegido. Essa afirmação conduz, necessariamente, a afastar-se o resultado normativo. Em outras palavras, afeta o tipo. Conduz, por isso, à atipicidade da conduta.

Cautela

A utilização ou não dos postulados afetos ao princípio da insignificância, como mencionado foi, não pode ser estendida a toda e qualquer situação prática apresentada, de sorte a desvirtuar por completo a própria função do ordenamento penal repressivo, como conjunto de normas e disposições jurídicas que regulam o exercício do poder sancionador e preventivo do Estado e seu caráter secundário de evitar o cometimento de ilícitos que afetam de forma intolerável os bens jurídicos tutelados.(7)

Quer-se dizer com isso que o instituto não pode ser banalizado(8). Ou seja, não é o caso do sujeito ativo ter furtado objeto de pequeno valor, por si só, hipótese configuradora a autorizar a utilização da medida. Neste passo, veja-se o adequado entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em sede de recurso de apelação nº 1999.041.005969-8: “Constitui conduta penalmente punível a subtração de doze reais. O pequeno valor do bem, por si só, é insuficiente para a aplicação do princípio da insignificância. O que para uns é desprezível, mostra-se significante para outros, como é o caso da vítima, pessoa de parcos recursos encontrada pelo réu a dormir em banco de terminal rodoviário.ª(2” T.Crim. – Rel. Des. Getulio Pinheiro – DJU 18.04.2001)

Muito menos o fato do sujeito passivo possuir situação econômica ou financeira privilegiada. Assim, não se autoriza que todos os que queiram e pensem estar agindo encobertados pelo princípio da insignificância possam entrar em monumentais lojas comerciais e apropriar-se de objetos de pequeno valor. Assim fosse, se cada visitante de tais estabelecimentos fizesse o mesmo, ainda que cada qual furtasse apenas um objeto, por certo restaria, em certo período de tempo, a potencial, senão completa insolvência do empreendimento, a par da sensação de impunidade daí derivada. Bem ilustra tal posição o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a seguir transcrito: “A absolvição, considerado o fato atípico, pelo princípio da insignificância, daria direito a qualquer pessoa furtar desse supermercado ou qualquer outro estabelecimento, mercadorias no valor de onze reais, que seria uma conduta não punível. (ACr 1069/2000 – 8″ C.Crim. – Rel. Des. João Antonio – J. 28.06.2000)”

Por isso, defendemos a tese de que a análise da presença da insignificância deve ser feita com muito critério e parcimônia ao caso concreto. Casos práticos ocorreram em que, em contextos fáticos semelhantes, já se reconheceu insignificante o dano perpetrado em ilícito em que o sujeito ativo apropriou-se de várias latas de leite em pó e fraldas descartáveis cujo valor da res furtiva superou, em muito, o da garrafa de uísque furtada pelo indivíduo para comemorar a data de seu aniversário. Veja-se que não se aventou, no primeiro caso, sobre furto famélico, mas sim dano insignificante.

Outra hipótese importante. Em se tratando de crime de roubo, extorsão, etc.., jamais se deverá adotar o princípio da insignificância, mesmo que o indivíduo subtraia da vítima apenas uma caixa de fósforos usada ou um vale-transporte. É que estes delitos são de natureza complexa e sua composição típica, tem entre os bens violados, a integridade física e moral da vítima, e não só o bem patrimonial alvejado.(9)

Aliás, sob este aspecto, cumpre observar que já se decidiu, no âmbito da Procuradoria Geral de Justiça deste Estado, em hipótese relativas à regra do artigo 28 do Código de Processo Penal, ser inadequada a promoção de arquivamento de inquérito policial em casos que tais. Com efeito, consta dos autos de Inquérito Policial n.º 2002.0006538-6, da Central de Inquéritos de Curitiba, o seguinte e acertado entendimento: Não vai ser mais ou menos grave o roubo pela quantia subtraída, mas sim pelo fato de ter havido ameaça ou violência à vítima, que é o que tipifica o roubo. Diferentemente do furto, em que o objeto material se esgota na coisa alheia móvel, no roubo há ofensa ao patrimônio alheio e também à integridade e segurança da vítima. Desta forma, consagrar o Princípio da Insignificância ao crime de roubo, em que se visa tutelar não só o bem móvel alheio mas também e, principalmente, a segurança e a integridade da pessoa, é privilegiar os assaltantes e fomentar a impunidade.(10)

Conclusão:

Em síntese, e para resumir como argumento para evitar a disseminação inadequada do princípio da insignificância, temos de um lado a inafastável segurança social e a relevante função preventiva da norma penal, e, de outro, o imediato reconhecimento da atipicidade de certas condutas – a par do benefício à administração da justiça em não se levar adiante um procedimento que certamente ocuparia tempo e recursos de outros realmente importantes. Dilema que, por certo, demanda redobrada cautela aos operadores jurídicos da atualidade, afinal de contas, trata-se de um princípio moderno do direito penal.

Notas

(1) Conforme a clássica lição de Francisco de Assis Toledo: “Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve se ocupar de bagatelas. – in Princípios Básicos do Direito Penal, São Paulo, Saraiva, 1991, 4.ª ed., pág. 133”

(2) Política Criminal y Sistema del Derecho Penal. 1972, Barcelona, pág. 52.

(3) Valor ínfimo não se confunde com pequeno valor. Neste poderá haver somente um abrandamento da pena; naquele, a própria exclusão da tipicidade.

(4) Julgado pertinente: PENAL – PEQUENA QUANTIDADE DE DROGA – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA -INAPLICABILIDADE – DELITO DE PERIGO PRESUMIDO.- O delito inscrito no art. 16, da Lei n.º 6.368/76 (posse ilegal de substância entorpecente) é delito de perigo presumido ou abstrato, não importando, para sua caracterização, a quantidade apreendida em poder do infrator, esgotando-se o tipo simplesmente no fato de carregar consigo, para uso próprio, substância entorpecente.

(5) Aqui, entenda-se, não se quer dizer que o sujeito que for apanhado com um minúsculo cigarro de maconha “um baseado”, não infringiu o comando proibitivo do artigo 16 da lei 6.368/76. Pelo contrário, a substância deve ser menor tão menor que impossibilite mesmo sua confecção. Contrario sensu, de tantos e perigosos precedentes daí decorrentes, perderia a lei penal uma de suas finalidades, o da prevenção.

(6) Relatório de lavra do Des. P. A. Rosa de Farias, Ap. Crim 2000710050432 – 1.ª T Crim. TJ/DF.

(7) Conforme Zaffaroni, Eugénio Raúl – Manual de derecho penal: Parte General. B. Aires: Ediar, 1977, p. 21

(8) Nesse sentido: FURTO SIMPLES TENTADO – CRIME DE BAGATELAR INOCORRENTE – Além de o valor da res ter superado o salário mínimo da época, o princípio da insignificância, sem previsão legal, só é aceito, entre nós, excepcional e analogicamente. Não se justifica ampliar-se a excepcionalidade de sua adoção, para estendê-la a outras situações, mormente após a vigência da Lei 9099/95, que contempla os crimes de menor potencial ofensivo, sob pena de decidir-se “contra legem” (TJ/RS – ACR 70001132620 – 7.ª C.Crim. – Rel. Des. Luis Carlos Ávila de Carvalho Leite – J. 17.08.2000).

(9) Não se pode falar em absolvição com fundamento no princípio da insignificância, até porque o agarramento de alguém pelo pescoço, a simulação de porte de arma e, ainda, a ameaça de mal grave e injusto não são atos insignificantes (TJRJ – ACr 214/2000 – 7.ª C.Crim. – Rel. Des. Moacir Pessoa Araujo – J. 09.05.2000).

(10) Excerto do Parecer n.º 374/2002 – PGJ, de 22/08/2002, de lavra da Promotora de Justiça Eliane Maria Penteado de Carvalho.

Carlos Eduardo Tosin

é advogado licenciado e auxiliar técnico do Ministério Público do Estado do Paraná.

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