As bombas que o presidente Lula vai ter de desarmar têm um poder de destruição tão grande que vai sobrar pouco tempo para as comemorações, a se iniciarem na noite do domingo das eleições. O PT está chegando ao centro do poder com disposição e garra para mudar. Afinal de contas, ao longo dos últimos 10 anos, fez a lição de casa, mudou radicalmente de posição e de conceitos, preparou quadros e, sobretudo, ganhou a confiança da sociedade. Ao vencedor, as glórias. É pena que a realidade imediata esteja a exigir um tal grau de intervenção que pouco tempo sobrará para Lula e os mais próximos usufruírem os ares dos Palácios do Planalto e do Alvorada.
Primeira equação: como compatibilizar promessas feitas com a realidade orçamentária? Resposta básica: corte radical de gastos, o que significa redução de programas e quadros, enxugamento de estruturas e divisões, racionalização de tarefas. Obtém-se uma apreciável fatia de recursos, insuficiente, porém, para as novas demandas, principalmente se a administração petista quiser, de plano e de início, exibir os primeiros traços de sua cara. Os sinais mais visíveis desse perfil já foram delineados pela bolsa-escola, bolsa-emprego, salário mínimo mais substantivo, melhoria das condições do funcionalismo público, forte ação orientada para alavancar os níveis do emprego.
É claro que não irá se exigir do novo Governo milagre nem mudança imediata. Deverá ser dado um prazo de carência, algo como 6 meses de tolerância, para que a administração mostre a que veio. Essa postura equivale a uma espécie de perdão e compreensão que a sociedade dedica aos governantes que iniciam um novo curso. Trata-se do prazo que o Governo terá para entender melhor a máquina sob sua direção. Mais de 20 mil cargos deverão ser preenchidos, 5 mil dos quais são considerados estratégicos para um perfeito domínio das estruturas sob controle. Nesse tempo, até os aflitos funcionários públicos, que reivindicam reposição salarial da ordem de 63%, ficarão quietos, no aguardo da nova ordem, sem se falar no espalhafatoso MST, que também deverá respeitar o ciclo do jejum e da abstinência. É oportuno lembrar, ainda, a bomba que está embutida no caixa da Previdência e as bombas da dívida interna (R$ 750 bilhões) e da dívida externa (US$ 250 bilhões).
Problema imediato maior estará no front político. Lula, à semelhança de Tancredo Neves, está fazendo um monumental arco de alianças. Implementar os compromissos significa abrir espaços em todos os lados da administração, o que vai deixá-la um pouco parecida com um queijo suíço. Esburacada, poderá dificultar um projeto de feição uniforme, que, aliás, a essa altura, é coisa para se esperar depois do Governo ter o completo domínio da situação, ou seja, em 2.004. A verdade é que os partidos deverão cobrar a fatura de um apoio efetivo. Após o interstício de 6 meses, no qual deverão endossar as ações e as medidas governamentais, até para dar vazão à voz das ruas, os partidos deverão ampliar as pressões.
De imediato, José Dirceu enfrentará o desafio da maioria absoluta ? 257 parlamentares ? o que exigirá cooptação do PMDB. Esforço maior se dará na esfera das grandes mudanças constitucionais, quando precisará de 2/3 dos parlamentares, ou seja, 308. Será uma tarefa hercúlea, na medida em que, deixando os espaços até então rígidos do petismo, a nova administração passará por uma cirurgia plástica que correrá o risco de transformar o antigo partido dos trabalhadores, de escopo socialista, em uma entidade frankesteniana, de caráter tão mutante, como a cara de Michael Jackson.
De qualquer forma, a bomba será acionada. E a bomba é somatória dos compromissos externos com os internos ? na verdade, a continuidade das responsabilidades do Governo FHC ? com o explosivo das promessas de Lula e o pavio das pressões endógenas, ou seja, que sairão dos próprios corpos do petismo. Não se pense que o radicalismo petista estará dormindo. Não. Do ponto de vista tático, haverá certo interesse de um grupo ? algo em torno de 30 parlamentares ? em criar visibilidade e ressonância. Já há até quem esteja se credenciando para ser porta-voz do grupo, como a deputada Luciana Genro, filha de Tarso Genro, do PT gaúcho, para quem o purismo do discurso deverá ser preservado a todo custo, se não por interesse geral de um partido que se pasteuriza, pelo menos por conveniência tática de um grupamento que pretende desfraldar as velhas bandeiras e ganhar espaços.
O presidente Lula até sabe como desarmar as bombas. O problema é que o tempo correrá mais rápido que sua capacidade de cortar os fios dos artefatos. Poderá contar com a sorte. Que Deus o ajude.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautorq@gtmarketing.com.br.