O Positivismo Jurídico

O frade franciscano Guilherme de Ockham (ou Occam [1285/1290 1347/1349])(1) (2), filósofo e teólogo inglês da Idade Média Clássica, e que se tornou jurista [e pagou o preço por ter divergências com o papa: foi acusado de heresia e excomungado] é considerado o precursor do moderno positivismo jurídico, não obstante alguns juristas entenderem que a Hobbes caberia tal título. Dado o espaço, essa discussão é estéril. Entrementes, fica o registro de que quem usou primeiramente a expressão “positivismo jurídico” foi o pensador francês Pedro Abelardo (1079-1142), sendo certo que a fonte do [moderno] jus positivum é justamente o escolástico Ockham. Em poucas palavras, o positivismo jurídico [lei prescritiva, comando do homem] considera a lei como única e inexorável fonte do direito, e, para os que o defendem(3), não seria possível falar em direito natural (lei descritiva, comando de Deus [aquele direito não escrito, imutável, eterno, cravado no coração do homem(4) e bem acima do direito posto pelo comando do Estado, o soberano]). O juspositivismo sustenta a teoria da “interpretação mecanicista’, que na atividade do jurista faz prevalecer o elemento declarativo sobre o produto ou criativo dos direitos, tal como adverte Norberto Bobbio(5). Noutros termos, em se tratando de positivismo jurídico o jurista é mero operador do direito do direito posto, na medida em que este direito se resume à firme observância da lei. Adverte Paolo Grossi que talvez nós juristas não tenhamos plena consciência disso, mas ainda somos, em boa medida, os herdeiros e as vítimas da grande redução iluminista(6). Na outra ponta estão aqueles que defendem a doutrina denominada, por alguns, de “nova hermenêutica”. Com efeito, ao se observar a hermenêutica filosófica [Gadamer e Heidegger], centrada no sujeito-sujeito(7), o exegeta não normativista(8) [aquele que não é o mero estudioso da lei, o leguleio], se afasta a filosofia da consciência (autonomia do sujeito, ideário da razão metódica de Descartes [centrada no sujeito cognoscente-objeto cognoscível]). Passa o exegeta a ter um papel mais ativo, preponderante, não mais engessado à letra fria da lei, ao comando napoleônico [in claris non fit interpretatio], ao ideário iluminista, à idéia de codificação, à manietação do jurista pós-moderno, à vontade, enfim, do legislador [que teria a idéia do justo, da retidão]. Portanto, uma primeira conclusão: o jurista não é [mero] operador, mas sim construtor do direito.

Entrementes, considerando as recentes posições adotadas pelo Supremo Tribunal Federal [v.g. caso Raposa Serra do Sol], muito se vem escrevendo a respeito da eventual possibilidade de o juiz, ao analisar o caso concreto, e com base na “nova doutrina”, afastar a aplicação do texto legal, especialmente quando este for contra os ditames constitucionais ou for considerado injusto, atuando, pois, com [verdadeiro] “senso de justiça”. Vem à baila, então, o tema do assim denominado “ativismo judicial” [que não se confunde com judicialização], e que deita raízes na jurisprudência norte-americana. Em linhas gerais, esse “ativismo judicial” permitiria ao juiz criar, inventar norma nova no caso concreto [norma essa não prevista na Constituição Federal, em leis etc.]), afastando, pois, a missão do legislador. Aliás, o hodierno exegeta insiste em escrever, não raro, o vocábulo norma, e não texto normativo [texto legal, disposição de código, texto constitucional]. Ora, a norma é produzida – com explica Eros Grau -, pelo intérprete autêntico [o juiz], somente ele. Prosseguindo, a idéia de senso de justiça impregnada na mente do juiz [visando a garantia de direitos e valores fundamentais constitucionais, e assim por diante] permitiria a este “extrapolar”, se assim se pode dizer, os ditames da ordem jurídica, “criando lei” quando da análise do processo em mesa. Também não há lugar, aqui, para escrever a respeito das espécies de “ativismo judicial” [inovador e revelador]. A grande crítica que se faz por parte de alguns juristas – é justamente a pretensa intromissão do judiciário no legislativo, pois aquele, com base nos anseios da sociedade, estaria extrapolando seus limites de atuação para “resolver” questões a respeito das quais inexiste lei elaborada pelo legislativo [hipótese de perda de mandato parlamentar e a questão do nepotismo, por exemplo], considerando que este, não raro, é refratário no cumprimento de sua missão maior, e se vem tornando mera extensão dos comandos do executivo. Considerando tais aspectos, e em tempos de turbulência democrática, o nó górdio é definir um determinado rumo, optando por: [i] mantença do positivismo jurídico [o apego “irrestrito ao texto de lei], tal como posto, [ii] a “permissão” que seria concedida ao juiz a fim de que possa se afastar de tal texto, criando norma, e cujo ato traduzir-se-ia na assim denominada “nova hermenêutica jurídica” [e que seria, na visão de alguns, o “ativismo judicial”], ou [iii] observar a “nova” hermenêutica filosófica, que de nova, a bem da verdade, nada tem(9), e não se confunde, nem de longe, com o que se denomina de “ativismo judicial”. Ora, ao que se nos parece, está afastada a “escola da subsunção” [Grau], que daria ao jurista a solução pronta ao caso concreto, tudo com base na fria letra lei. A idéia de clareza da lei parece não mais ter lugar em tempos de nova hermenêutica jurídica; a idéia de que o juiz se vê atrelado ao texto legal [e não à norma] parece não mais fazer sentido [e aqui não se trata de levantar a bandeira do “antinormativismo”, tal como se possa pensar, num primeiro momento]. Ora, o apego exagerado ao formalismo, somado à ausência de [ampla] visão hermenêutica, só fazem com que o jurista participe do espetáculo como mero coadjuvante. O próprio exegeta permite fique o direito encastelado, atrás das rígidas e intransponíveis muralhas edificadas pelo Estado, deixando de lado uma realidade bem mais palpitante, realidade que seus olhos não conseguem enxergar, pois ainda vive em tempos de normativismo. Com efeito, falta ao sujeito perceber, compreender e apreender o objeto [v.g. a disposição legal]; perceber que é ele [o sujeito] alterado pelo objeto, e não ao contrário; perceber que o objeto determina o sujeito, caso este o queira. Noutros termos, cabe ao sujeito, para fins de conhecimento, travar um verdadeiro acordo com o objeto, mediante diálogo(10). É o intérprete que precisa perceber, definitivamente, que não mais se fala em sujeito-objeto, e sim sujeito-sujeito, e que o objeto tem o “poder” de alterar o sujeito, caso este esteja disposto, repita-se. O conhecimento do objeto somente ocorrerá se existir uma relação espontânea entre este e o sujeito. O jurista, talvez, precisa olhar o outro lado da parede. É imprescindível, pois, conhecer a lei, com certeza. Mas, bem mais que isso, faz-se necessário conhecer o direito. Portanto, não é de falar em “nova hermenêutica jurídica”. Basta ao intérprete perceber que o direito é pulsante, e muitas discussões seriam desnecessárias.

A leitura desbragada de códigos em sala de aula é fácil para o professor e [muito] cômoda aos alunos. Aquele contribui para a mantença do positivismo jurídico [normativismo, por assim dizer]; aquele contribui para que raízes as raízes do positivismo jurídico se solidifiquem ainda mais, enquanto que este passa a ser mais um semeador de dogmas jurídicos, que há muito deveriam estar ultrapassados.
 
Notas:

(1)  A propósito: Michel Villey. A Formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005; HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

(2)  E aqui não cabe se estender no estudo do nominalismo e do realismo.

(3)  Ver, dentre outros expoentes do positivismo jurídico: HART, Herbert L.A. O conceito de direito. São Paulo:Martins Fontes, 2009; AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined. New York: Prometheus Books, 2000.

(4)  HÖFFE, Otfried. Justiça política. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 79.

(5)  O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone Editora, 1999, p. 133.

(6)  Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 72.

(7)  Ver: HASSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003, especialmente pp. 20-21.

(8)  Expressão de Javier Hervada, na obra O que é o direito? A moderna resposta do realismo jurídico. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 4.

(9)  A obra clássica de Gadamer completa 50 anos em 2010.

(10)  O Estado de São Paulo, 25/09/2010, S6.

Carlos Roberto Claro é advogado em Curitiba, mestre em Direito pelo Unicuritiba.

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