A Resolução n.º 11/2006, de 11 de janeiro, do Conselho Nacional de Justiça, regulamentou o critério de atividade jurídica para a inscrição em concurso público de ingresso na carreira da magistratura nacional, considerando, em suma, (i) a necessidade de se estabelecerem regras e critérios gerais e uniformes, enquanto não for editado o Estatuto da Magistratura; e (ii) a existência de vários procedimentos administrativos, no âmbito do CNJ, indicando ser mister a explicitação do alcance da norma constitucional, especialmente o que dispõe o inciso I do art. 93 da Constituição Federal e sua aplicação aos concursos públicos para ingresso na magistratura de carreira.
Surge, à partida, a primeira discussão: poderia o CNJ regulamentar matéria cuja iniciativa é do Supremo Tribunal Federal (Estatuto da Magistratura)?
Mais uma razão a reforçar a tese de que o inc. I do art. 93, no que toca à atividade jurídica, não é auto-aplicável, tanto que o CNJ baixa Resolução para regulamentá-la, quando o correto seria aguardar o Estatuto da Magistratura, de iniciativa do STF.
E desse ponto de vista não destoa Joel de Menezes Niebuhr: ?Por tudo e em tudo, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal não é auto-aplicável e os tribunais não agregam competência para regulamentá-lo de forma autônoma, independente de lei. Quem deve disciplinar o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal é o Congresso Nacional, por meio da Lei Complementar referida no seu caput?(17).
Para Danilo Andreato(18), ?o CNJ é tão ilegítimo para regulamentar o que se compreende por atividade jurídica quanto as comissões de concurso da magistratura, que o fazem por intermédio de editais. Logo, trata-se de violação ao princípio da legalidade, vez que a Lei Maior não cometeu ao CNJ a função de regulamentar o seu artigo 93, I, mas sim, em caráter inicial, ao STF, por meio de lei complementar?.
No entanto, nenhuma entidade representativa argüiu essa inconstitucionalidade, passando a Resolução, que poderia conter recomendações aos tribunais brasileiros, a normatizar(19) a matéria taxativamente, a começar pelo seu art. 1.º, em que elide qualquer interpretação voltada à aceitação de período de estágio acadêmico ao cômputo dos três anos de atividade jurídica: ?Para os efeitos do artigo 93, I, da Constituição Federal, somente será computada a atividade jurídica posterior à obtenção do grau de bacharel em Direito?.
Induvidosamente, a redação do art. 1.º da Resolução desprestigia o estágio-acadêmico supervisionado existente no Ministério Público e na Magistratura, para além dos exercidos em escritórios de advocacia e em outras repartições, pois não é rara a percepção, pelo supervisor do estagiário, de sua evolução. Muitas vezes, esses jovens colam grau com notável experiência, tanto que, amiudemente, são convidados ou a permanecer no escritório advocatício ou a exercer um cargo em comissão em gabinetes de magistrados ou de membros do Ministério Público.
Por outro lado, presumir-se que os três anos de atividade jurídica posteriormente à colação de grau tornarão apto o profissional do Direito à magistratura é pura ilusão, como observa Celso Spitzcovsky: ?O exercício da profissão pode tê-lo transformado em um especialista para uma determinada matéria, fazendo-o perder, por força desse aspecto, uma visão interdisciplinar imprescindível para o exercício de tal mister?(20)
No art. 2.º, a Resolução explicita provisoriamente o que considera atividade jurídica (isso até o advento do Estatuto da Magistratura art. 93, ?caput?, da CF): ?Considera-se atividade jurídica aquela exercida com exclusividade por bacharel em Direito, bem como o exercício de cargos, empregos ou funções, inclusive de magistério superior, que exija a utilização preponderante de conhecimento jurídico (…)?.
Ao revés do que deveria ocorrer, o dispositivo dá margem a dúvidas e diferentes interpretações, principalmente quando se refere a cargos, empregos ou funções que exijam preponderante utilização de conhecimento jurídico. Um escrivão de polícia se enquadra nessa situação? E um agente delegado do foro extrajudicial um notário ou um registrador? E um oficial de justiça? E o Diretor de uma biblioteca jurídica?
Todas essas pessoas, direta ou indiretamente, utilizam conhecimentos jurídicos para o exercício de suas profissões, muito embora possa haver flanco de subjetivismo a aceitar sua atividade como jurídica.
Partindo-se do raciocínio de que todas elas se amoldam à definição do art. 2.º da Resolução n.º 11/06-CNJ, que utilidade essa circunstância teria no exercício da magistratura? Só isso bastaria para se considerar o candidato experiente juridicamente, a ponto de exercer com segurança a magistratura?
O que dizer do exercício do magistério superior? Compatibiliza-se essa atividade com o espírito constitucional de se recrutarem pessoas experientes à magistratura, que já enfrentaram situações concretas na área jurídica, que se relacionaram com o ambiente forense, que emitiram consultas e pareceres? Afinal, o que o magistério superior, por si só, acrescenta ao candidato ao concurso de ingresso na carreira da magistratura? Teria um professor de Direito Comercial toda a visão global do Direito exigida do candidato e pela atividade jurisdicional, ou estaria mais apto a ingressar nos quadros do Judiciário o pretendente à judicatura que, com férrea determinação, se preparasse, em todas as matérias, para o certame?
São indagações que evidenciam a falta de critérios práticos e de experiência, numa nítida demonstração de que seria melhor não regulamentar o texto constitucional antes de um exame percuciente de todas as classes jurídicas.
Se a tecla de fundo é a maturidade, que se regulamentasse, por ora, que só poderia inscrever-se em concursos públicos da magistratura aqueles que colaram grau há três anos, no mínimo.
Antes de o CNJ baixar a Resolução comentada, Manoel Antônio Teixeira Filho pôs a realce o bom intuito da norma constitucional, podendo-se concluir ter o renomado jurista paranaense procurado traçar a linha ideal para um candidato à magistratura: ?Não estamos a afirmar que, sem um mínimo de experiência profissional como advogado, alguém estará condenado a ser um mau juiz. Nada disso. O que desejamos deixar claro é que, desprovido dessa experiência, o magistrado tenderá a ser arrogante, formalista e insensível. A sensibilidade é algo essencial para o magistrado, bastando lembrar que o vocábulo ?sentença? deriva da forma latina ?sententia?, que significa ?sentir?. Para além disso, tais magistrados acabam por supor que a atividade jurisdicional traduz um favor, uma gentileza do Estado para com os indivíduos e as coletividades, esquecendo-se que ela constitui, mais do que um poder, um dever estatal, levando-se em conta o fato de o Estado proibir a autotutela de direitos ou, como expressa o Código Penal, o ?exercício arbitrário de suas próprias razões? (art. 345)?(21).
O art. 3.º da Resolução n. 11-CNJ tornou equivalente à atividade jurídica os cursos de pós-graduação na área jurídica ?reconhecidos pelas Escolas Nacionais de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados de que tratam o art. 105, I, e o artigo 111-A, parágrafo 2.º, I, da Constituição Federal ou pelo Ministério da Educação, desde que concluídos com aprovação?.
Excepcionados os que são reconhecidos pelo Ministério da Educação, os demais cursos de pós-graduação atrelados aos artigos da CF inscritos no art. 3.º da Resolução são os realizados pelas Escolas da Magistratura.
Com espírito crítico (construtivo), Danilo Andreato tece firme censura a respeito dessa equiparação:
?Se o nó górdio do tema é a adoção de critérios para selecionar pessoas mais experientes, mais maduras para proferir julgamentos, como justificar o suposto maior nível de maturidade de alguém que cursou uma pós-graduação ? e somente estudou ? durante dois anos e, no terceiro ano, após titulado especialista, por exemplo, foi lecionar em uma universidade? Que experiência prática terá adquirido essa pessoa para o exercício da judicatura?
(…)
Em primeira análise, sob a ótica dos artigos 2.º e 3.º da Resolução 11, essa pessoa estaria apta, munida da devida experiência para julgar. Entretanto, a situação examinada não está consoante o objetivo, a finalidade da norma constitucional. Este discrímen não está de acordo com o preceito normativo.
Conforme o Ministério da Educação, a pós-graduação lato sensu, mais conhecida como especialização, é destinada ao aprimoramento acadêmico e profissional, com duração máxima de dois anos e com caráter de educação continuada. Na hipótese ventilada, se o bacharel em Direito não for advogado militante ou não exercer qualquer cargo ou função jurídica, não haverá aprimoramento profissional, aprimoramento prático, mas apenas acadêmico, apenas teórico. Vale dizer, a polêmica não foi afastada.
(…)
O graduado em Direito que se inscreveu em uma pós-graduação e, após titulado, passou a ministrar aulas na universidade, tudo ocorrido no intervalo de, pelo menos, três anos, estará apto a vestir a toga, a julgar questões jurídicas, porque, aos olhos do CNJ, vesgo pela inconstitucionalidade, terá exercido atividade jurídica. Esse tratamento fere, inegavelmente, o princípio da igualdade, que deita raízes no artigo 5.º, caput, da Constituição Federal, porquanto não há correlação lógica entre o abstrato, o previsto pela norma, e o real?(22).
4. Ausência de regra de transição aos candidatos que se preparavam ao concurso
Para além de a regulamentação do critério de atividade jurídica para inscrição em concurso público da magistratura vir instrumentalizada por Resolução inconstitucional, apanhou de surpresa todos os bacharéis em Direito que, de algum tempo, vinham disciplinadamente se preparando para o concurso, com a responsabilidade de quem estava definindo sua vida profissional (e familiar) em obediência à sua vocação.
Muitos, que residiam em Capitais onde freqüentavam, com sacrifício (inerente à realidade econômica brasileira) cursos preparatórios ao concurso (uma evidência de que as faculdades diminutamente preparam seus alunos para carreiras como a de juiz e a de membro do Ministério Público)(23), restaram sem rumo, retornando às suas cidades, onde se obrigaram refazer seus planos. Vários realizaram estágios proveitosos na fase acadêmica, e se dedicavam aos estudos, às vezes apoiados pelos pais ou pelos cônjuges, tudo para se atingir a meta de ser magistrado(24).
Mas, infelizmente, nenhuma regra de transição foi prevista na Resolução do CNJ, em desconsideração à realidade que se apresentava antes da EC 45/04. Por óbvio, não se trata de direito adquirido, mas sim de respeito a homens e mulheres que, jovens ou não, se definiram pela magistratura.
Ainda na esfera da auto-aplicabilidade da norma do art. 93, I, da CF, e anteriormente à edição da Resolução n.º 11/06-CNJ, Viviane Ruffeil Teixeira Pereira(25) questionava, com preocupação, como seriam tratados os candidatos à magistratura que já se dedicavam aos estudos para o concurso: ?A questão, no entanto, está longe de ser pacificada, pois, considerando que a norma em comento seja auto-aplicável, qual o tratamento que se dará ao candidato que já vem estudando para o concurso da Magistratura mas não tem os três anos de atividade jurídica justamente porque, antes, não lhe era exigido? Terá ele de aguardar por mais três anos, desempenhando atividade jurídica, para que só então possa submeter-se ao concurso??.
Da experiência no magistério, registre-se que muitos acadêmicos começam a se preparar a concursos da magistratura e do Ministério Público logo no primeiro ano, alunos que não são considerados ?estudantes? de Direito, mas ?estudiosos? do Direito, tamanha a dedicação com que desenvolvem suas atividades na faculdade. Esses são os autênticos vocacionados, que, desde o ingresso no curso, têm certeza da carreira que abraçarão, muito embora as instituições de ensino padeçam do vício de formar bacharéis em Direito na perspectiva do exercício da advocacia, e, mais recentemente, com estímulo à produção científica com as monografias de final de curso, defendidas perante bancas que se preocupam com a correção das notas de rodapé e com a menção bibliográfica nos padrões tidos como corretos (teoricamente, formam-se aptos a advogar e a freqüentar um mestrado, ou somente a escrever obras científicas, mas sem nunca ter lavrado uma sentença ou uma denúncia)(26).
Enfim, em respeito aos que foram surpreendidos com a EC 45/06, que demorou a se concretizar, poderia a Resolução do Conselho criar uma norma de transição, até mesmo incluindo estágios realizados.
Mas ainda há tempo para revisar a multicitada Resolução! (Segue)
Notas:
(17) ?Aspectos destacados acerca da comprovação de três anos de atividade jurídica como requisito para o ingresso na magistratura?. Disponível em http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br/index.htm?http:// www.revistadoutrina.trf4.gov.br/artigos/edicao010/joel?niebuhr.htm acesso em 9/9/06.
(18) ?Ingresso na magistratura – Não cabe ao CNJ regulamentar atividade jurídica?, disponível em http://apamagi.lex.com.br; acessado em 7/9/06.
(19) Para Marcus Vinícius Corrêa Bittencourt e Leandro J. Silva, ?o CNJ realizou a sua função pública de controle da atividade administrativa, prevista constitucionalmente, ao dissipar as divergências a respeito do corrente entendimento da expressão ?atividade jurídica? ? (?ATIVIDADE JURÍDICA PARA INGRESSO NA MAGISTRATURA – CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESOLUÇÃO n.º 11 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA?, disponível em. http://www.advogado.adv.br/, acesso em 9/9/06.
(20) ?A Inconstitucionalidade do Critério de Prática de Atividade Jurídica para Concurso Público?. Disponível na Internet: http://www.mundo juridico.adv.br Acesso em 6/9/06.
(21) Ob.cit., p. 39.
(22) Texto citado. Disponível em http://apamagi.lex.com.br; acessado em 7/9/06.
(23) Na mesma monografia antes aludida, João Pedro Gebran Neto, magistrado federal, analisa o direcionamento de estudo que deveria existir nas faculdades de Direito àqueles que intencionam as carreiras públicas: ?Os exemplos dados em aula, o estágio, a atividade profissional da maioria dos professores, quase tudo endereça o aluno para uma carreira de advogado. Poucos são os membros da Magistratura e do Ministério Público que lecionam, se comparados com o número de advogados. E, ainda assim, quando o fazem, também acabam tendendo para a formação de advogados. E aí reside a grande falha, porque nesses mesmos bancos escolares é que se formam os futuros juízes, promotores, procuradores, auditores, delegados de Polícia, e tantos outros cargos privativos de bacharel em Direito. (…) Disso decorre a necessidade, mesmo em caráter facultativo, de serem ministradas disciplinas específicas sobre o exercício da judicatura, com aulas teóricas e práticas, com realização de audiências e júris simulados, com lições sobre técnicas na lavratura de sentenças cíveis e criminais, sobre hermenêutica jurídica, sobre psicologia judiciária, entre outros temas de relevo. Pois, nos bancos escolares, é que deverão ser dadas as primeiras lições para a formação dos magistrados do futuro, desde uma eficiente formação no ensino básico até o ensino superior? (p. 140/142).
(24) De se registrar a notícia, que cabe como exemplo a ser seguido, dada por José Renato Nalini, no que toca à integração Escola da Magistratura/Universidade: ?Continua aberta a porta do convênio com a Universidade, assim como o celebrado pela ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA com a UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, PUC-SÃO PAULO e UNIVERSIDADE MACKENZIE. Por ele, a ESCOLA DA MAGISTRATURA se encarrega de ministrar aulas na cadeira de Instituições Judiciárias, a partir do quarto ano do Curso de Bacharelado, para os alunos que se inscreveram nessa disciplina facultativa? (?O Futuro das Profissões Jurídicas?, p.50).
(25) ?Mudanças no Estatuto Constitucional da Magistratura?, in ?Reforma do Judiciário Comentada?, Coordenada por Zeno Veloso e Gustavo Vaz Salgado, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 55.
(26) O próprio ensino da Sociologia está, em muitas instituições, dissociado da realidade a ser enfrentada por futuros juízes e promotores de justiça, mormente na área da Infância e da Juventude (ECA), disciplina que nem sempre compõe a grade curricular.
José Maurício Pinto de Almeida é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Paraná e do Centro de Estudos Jurídicos do Paraná. Professor Emérito da Faculdade de Direito de Curitiba. Membro do Centro de Letras do Paraná, do Instituto de Magistrados do Brasil. E da Academia de Cultura de Curitiba.
