Levando-se em linha de consideração a realidade brasileira, podem-se mencionar, na condição de acadêmicos ou de bacharéis em Direito, além dos bem situados socialmente, os que necessitam trabalhar, os que foram estudar quando a idade já avançava – com família constituída, os policiais militares, os bancários, os comerciários, pessoas que, com seu emprego, sustentam outras. Enfim, a grande maioria provém da classe média baixa, e não podem simplesmente cessar repentinamente suas ocupações, para que possam preencher o requisito de três anos de atividade jurídica.
Pode-se argumentar que, para esses, a Resolução criou a brecha dos cursos de pós-graduação, como se fosse fácil organizar suas vidas para iniciar projeto dessa espécie, às vezes em cidades distantes, ou mesmo com caras mensalidades (são notoriamente altas as mensalidades dos cursos de pós-graduação nas instituições particulares!)(27).
Que chance teria um caixa de banco de uma agência do interior, casado e pai, de se atirar numa atividade jurídica, quando muita vez nem advogados existem na cidade? Que oportunidade teria um policial militar de carreira de se dedicar a uma atividade jurídica para o mesmo fim? Restar-lhes-ia o curso de pós-graduação, com todas as dificuldades apontadas. E, ainda assim, o requisito seria ficticiamente preenchido, posto ser de conhecimento geral que esses cursos se aprofundam em matérias que exigem leitura de literatura estrangeira, bem assim que, de prática, nada se aprende. Contato com o Direito teórico e aprofundado, sim; mas isso não atende à expectativa constitucional.
De conseguinte, o princípio da igualdade é arranhado por essa sistemática, porque se alijam da disputa por uma vaga na magistratura aqueles que mais dificuldades enfrentam em suas vidas.
A matéria é posta em discussão por Viviane Ruffeil Teixeira Pereira(28):
?É importante salientar, no entanto, que as restrições para o ingresso nas carreiras públicas, para que sejam válidas, precisam ser pautadas em motivos razoáveis. Isso porque vigora nessa seara o princípio da isonomia, ou seja, todos indistintamente podem disputar a vaga, e eventuais desequiparações só são autorizadas quando houver motivos suficientes que as justifiquem.
(…)
Assim, ?prima facie?, qualquer restrição ao ingresso em uma carreira jurídica poderá ser tida como constitucional, desde que se trate de exigência razoável e que guarde correlação lógica com os princípios constitucionais. Do contrário, haverá violação ao princípio da isonomia?
Por essa razão, se disse antes que a Constituição procurou resolver o problema na contramão da história. Gerou entraves de adaptação, de interpretação e de injustiças com a norma que exige três anos, no mínimo, de atividade jurídica dos candidatos à magistratura, quando o papel do Estado seria o de aperfeiçoar o método de recrutamento e de formação de magistrados, com a realização de concursos eficazes e com base científico-metodológica, com objetivos claros de se selecionar um futuro juiz (e não um futuro jurista), com posterior formação institucionalizada.
Todos fariam o concurso em pé de igualdade, e, depois, seriam submetidos a um rigoroso estágio probatório, com curso de formação eficientemente preparado.
Não se olvide que, quanto mais se estreitam caminhos para o ingresso à magistratura, com exigências que não atendem à realidade social, mais e mais tomarão corpo a elitização e a insensibilidade no Poder Judiciário, malefício a uma sociedade que anseia por justiça.
Ou, alternativamente, se um dos escopos da CF é a maturidade, que se estabeleçam dois anos de carência depois da colação de grau para que possa o candidato inscrever-se no certame.
6. Conclusão
Com a proliferação das faculdades de Direito em nosso País (?rectius?: faculdades particulares de Direito), o número de recém-formados semestralmente é elevadíssimo, e a maioria numa faixa etária que varia entre 22 a 24 anos.
Com a nova regra constitucional de se exigirem três anos de atividade jurídica, no mínimo, para a inscrição em concursos à magistratura, os candidatos mais jovens já estarão próximos de seus 25 a 27 anos quando preencherem o requisito, e, conseqüentemente, mais maduros para o enfrentamento de uma carreira judicante.
Na realidade, não se separam a idéia do candidato maduro e a dos três anos de atividade jurídica, tanto que a Resolução n.º 11, do Conselho Nacional de Justiça, possibilitou que cursos de pós-graduação, o exercício de magistério superior e cargos ou funções que exijam preponderante conhecimento jurídico sejam reputados atividades jurídicas. Ou seja: a experiência jurídica, com vistas à prática, foi alijada (abrandada) nesses casos, propiciando o amadurecimento do futuro juiz com o decurso do tempo.
Antes da edição da norma regulamentadora do CNJ, o magistrado trabalhista Manoel Antônio Teixeira Filho(29) vaticinava que ?a EC n.º 45/2004 não exige que o candidato ao ingresso na magistratura tenha exercido a advocacia forense, e sim que se tenha dedicado, no mínimo por três anos, à ?atividade jurídica?. Esta compreende não só a que é realizada nos fóruns, como a consultoria, a assessoria e a direção jurídicas, nos termos do inciso II, do art. 1.º, da Lei n.º 8.906/94. Mesmo assim, essa exigência se reveste de bons propósitos conquanto o ideal seria que houvesse um mínimo de advocacia forense. Convém aos interesses do Judiciário e dos jurisdicionados que os candidatos ao cargo de juiz tenham passado pelas trincheiras da advocacia forense, mormente, em primeiro grau?.
No entanto, o CNJ, além de regulamentar provisoriamente matéria que não se insere em sua competência, tornando-a auto-aplicável, percebeu a desigualdade com que seriam tratados os candidatos caso a atividade jurídica se resumisse em prática forense ou trabalho direto de consultoria e/ou assessoria, como se previa.
O CNJ acabou por ampliar o conceito de ?atividade jurídica?, dando mostras de que a maturidade se sobrepõe à experiência jurídica, até porque outra porta foi aberta pela Constituição Federal (EC 45/04), quando tornou obrigatória a participação do magistrado, até o vitaliciamento, em curso oficial de preparação (à carreira) e aperfeiçoamento (art. 93, IV, CF).
Se o vitaliciamento ocorre após 2 anos de exercício na magistratura, poderia prever-se que, num próximo passo, o CNJ viesse a regulamentar o período de formação, para que esses cursos não sejam apenas de finais de semana ou mensais, improvisados e sem resultado prático.
É preciso, porém, alterar a metodologia empírica e ultrapassada dos concursos públicos à magistratura, delegando-se a seleção a profissionais que conheçam técnicas de recrutamento, pois, ao revés, nem sempre a seleção será justa, com índices de reprovação que tão-somente alimentam a vaidade intelectual dos examinadores.
Havendo vontade política e planejamento, nada impediria que o modelo brasileiro se igualasse ao de outros países desenvolvidos, eliminando-se a exigência de atividade jurídica precedente ao concurso, com estipulação de uma carência de dois anos após a graduação (maturidade), investindo-se na formação pós-aprovação(30), esta sim de utilidade prática, desde que bem programada e abandonando o modelo acadêmico de repetição de ensinamentos teóricos.
Com essa sistemática, a experiência jurídica anterior ao concurso não seria supervalorizada, até porque a preparação à carreira abordaria todos os prismas do desempenho jurisdicional, inclusivamente o administrativo (direção de fóruns, p. ex.).
Nesse ponto, com a autoridade de quem mais produz textos e obras sobre a matéria no Brasil, enfatiza José Renato Nalini(31): ?Missão do curso de preparação é também detectar características impedientes de um adequado exercício funcional. A experiência terá cada vez menor valor. O amanhã precisa de pessoas com novos conhecimentos, novos conceitos e novas idéias. (…) Os cursos de iniciação funcional são importantes, mas desenvolvidos após a nomeação. Têm primado por uma reiterada transmissão de conhecimentos técnico-jurídicos, nos quais o candidato investiu bastante para ser aprovado no concurso?.
Torna-se irrefragável que o pano de fundo da norma constitucional é o de se evitar ingressem na carreira da magistratura pessoas inexperientes de vida, que nunca trabalharam, que não vivenciam problemas de seu momento histórico, os que integram a geração de sucesso.
O jovem inexperiente não tem condições de resolver lides em que estão envolvidos patrimônios, liberdade, guarda de filhos, separação de corpos etc. Sentir-se-á inseguro, como expõe Manoel Antônio Teixeira Filho(32): ?A insegurança é filha da inexperiência e mãe da agressividade. Logo, um juiz inexperiente tende a ser inseguro e, em razão disso, agressivo, descortês. Essa agressividade constitui um mecanismo de defesa contra a própria insegurança?.
E a demonstrar que a vontade política nunca se manifestou para aperfeiçoar o recrutamento e a formação inicial do novel juiz, mencione-se o trabalho histórico intitulado ?Formação e Aperfeiçoamento de Juízes?, da lavra do professor paranaense Egas Dirceu Moniz de Aragão(33), em que a temática é enfocada realista e criticamente e isso no início da década de 60 do século passado. Moniz de Aragão, orgulho da comunidade jurídica do Paraná, foi o preconizador desse debate no Brasil, mas o conservadorismo das faculdades de Direito e do Judiciário não permitiu que se abrissem novos rumos ao aperfeiçoamento da metodologia de recrutamento e de formação inicial. Uma lástima!
A idéia do processualista era a de submeter o candidato a juiz a dois estágios: 1) – curso teórico sistematizado, pelo qual se ministrariam conhecimentos particularizados sobre as tarefas judicantes, com expedição de certificado de habilitação que autorizasse o portador a inscrever-se em concurso para Juiz Substituto; 2) – após investido nas funções de juiz, seria ele submetido a um período de estágio probatório (dois anos) sob a orientação de um Juiz Titular.
Mas, enquanto o inc. IV do art. 93 da CF não for minuciosamente regulamentado, tornando obrigatória a realização de cursos pós-aprovação, estar-se-á valorizando o critério da atividade jurídica, mitigado pela Resolução n.º 11 do CNJ.
Ademais, o correto seria o Estatuto da Magistratura(34), a seu tempo e modo, regulamentar a matéria, e, até isso ocorrer, investir-se-ia na aplicação vigorosa do dispositivo referido no parágrafo anterior, suprindo-se a ilusória experiência jurídica com os cursos de iniciação, com duração de, no mínimo, dois anos.
E para assegurar a maturidade dos candidatos, os tribunais, com a independência que possuem, poderiam, de comum acordo, aplicar tão-somente um período de carência de dois anos (ou três) para que o bacharel possa inscrever-se no certame.
Por fim, é de se esperar que, após tantos anos de preocupação e de engessamento do sistema de recrutamento e de formação inicial dos magistrados no Brasil, uma nova geração de administradores da Justiça aponte seus olhares para o perfil e ao conteúdo de quem exercerá o poder jurisdicional.
E que a Justiça seja real!
Notas:
(27) Registre-se que, em algumas Escolas de Magistratura, o nível de desistência vem crescendo a cada ano, pois, apesar de as mensalidades beirarem um salário mínimo, os cursistas não têm condições de arcar com mais essa despesa.
(28) Artigo citado. p. 49/50.
(29) Ob. cit., p. 39.
(30) No período de 17 a 20 de setembro de 1986, realizou-se, em Recife, o X Congresso Brasileiro de Magistrados, em que apresentei o trabalho intitulado ?CONCURSO PARA A MAGISTRATURA DE CARREIRA: INEXIGIBILIDADE DE APRESENTAÇÃO DE TÍTULO DE HABILITAÇÃO EM CURSO PREPARATÓRIO PARA INSCRIÇÃO?. Por unanimidade, a Sessão Plenária aprovou a proposição no sentido de, na Constituição então a se elaborar, se vedar expressamente a exigência de apresentação de título de habilitação em curso preparatório à magistratura como requisito para inscrição ao respectivo concurso, em que se defendia a desigualdade da exigência, propondo-se, já àquela época, a realização de curso de formação posterior à aprovação, com a seguinte argumentação: ?E todos os colegas magistrados sabem que é nessa fase inicial que todos precisamos de mais orientação, pois qualquer experiência anterior não supre as pequenas dificuldades pelas quais passamos, quer nas primeiras audiências, quer nas primeiras decisões, ou mesmo no relacionamento social. Evidencia-se, assim, que os resultados desses cursos seriam imediatos, pois destinados a pessoas que, em breve, estariam efetivamente exercendo a judicatura, e, por isso, psicologicamente preparadas para absorver todos os ensinamentos e orientações, podendo, inclusive, estagiar com juízes mais experientes? ?Curso preparatório à carreira da Magistratura após a nomeação e assunção do candidato no cargo inicial: obrigatoriedade de sua realização?, in Revista Jurídica n. 05, editada pelo Diretório Acadêmico ?Clotário Portugal?, da Faculdade de Direito de Curitiba, 1987, p 42.
(31) ?O Juiz e o acesso à justiça?, p. 161/162).
(32) Ob. cit., p. 39.
(33) ?Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná?, ano 8, n.º 8, pág. 114/123.
(34) A norma do art. 93, I, CF, não é auto-aplicável.
José Maurício Pinto de Almeida é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Paraná e do Centro de Estudos Jurídicos do Paraná. Professor Emérito da Faculdade de Direito de Curitiba. Membro do Centro de Letras do Paraná, do Instituto de Magistrados do Brasil. E da Academia de Cultura de Curitiba.