O poder paralelo e o judiciário paralelo

Como resultado da ausência de credibilidade no sistema, nas comunidades mais carentes, normalmente nas favelas, há muito tempo que os sociólogos advertem sobre a ocorrência da anomia. Lá, entre favelados, excluídos e discriminados, a lei não é a oficial do Estado. São os traficantes, os delinqüentes, enfim os “larápios bem sucedidos” que administram a comunidade, ditam as normas e as executam sumariamente. Claro está que os problemas sociais são relevantes e devem ser sempre considerados em qualquer análise global que se pretenda fazer em torno do que se denominou crise do Poder Judiciário. Entretanto, não cabe ao Judiciário, como atividade primeira, a resolução dos problemas sociais ou econômicos. Enquanto o Poder Executivo não atenua a crise que é de sua responsabilidade, devem-se abrir frentes para diminuir o sofrimento e as frustrações dos pobres e miseráveis perante o Poder Judiciário. Não deve ser fácil pensar em Justiça quando se vive privado até de condições básicas e primárias necessárias à própria sobrevivência; entretanto, deve-se procurar atacar várias frentes sem esmorecer.

O Poder Judiciário, na sua evolução, ficou muito distante do povo – que passou a temê-lo não sem razão. Ao não manter comunicação eficiente com a população, dela acabou se afastando de tal forma, que a fez tomar o caminho da renúncia aos direitos ou a estimulou a procurar caminhos inadequados para resolução de conflitos. Tal distância, inclusive com relação à mídia, fortaleceu poderes paralelos, desenvolvidos e mantidos por traficantes e chefes de organizações criminosas, que ocuparam o espaço deixado pelo Estado e passaram a ouvir e “solucionar” os conflitos que lhe eram apresentados.

É passível de compreensão esse fenômeno e é até justificável do ponto de vista do excluído. Imagine-se o “favelado” miserável, “morrendo de fome”, que mora com seu cônjuge e cinco filhos em barraco construído clandestinamente em terreno alheio, com luz “puxada” do poste de iluminação pública. Ao surgir a desavença com o vizinho ele raciocina:- “péra aí”… se eu for procurar o juiz ele vai me despejar, eu vou ficar sem ter onde morar, ou no mínimo vai cortar minha luz, já que eu puxei um “gato” direto do poste. A quem esse cidadão excluído vai procurar?

Esse cidadão achará, por certo, alternativas procurando alguém que o escute, que saiba falar a sua língua e que o entenda. Não procurará quem possa reprimir a ilegalidade da ocupação e a subtração de energia do poste de iluminação pública. Há bons exemplos de alternativas lícitas, como a mediação de conflitos promovidas por presidentes de associação de bairro, juízes de paz e religiosos, dentre outros que ocupam bem esse espaço e dão ao indivíduo a atenção que necessita para solucionar o seu problema imediato. O fenômeno da judicialização das relações sociais está efetivamente ocorrendo e o direito tem realmente influído na vida social das pessoas. São vários os exemplos em que essa situação se verifica, como nos casos de mulheres que são agredidas pelos companheiros e crianças em situação de risco. Por evidente que o direito deve regular essas relações, até mesmo em defesa da dignidade da pessoa humana. Os Juizados Especiais, nessa perspectiva, gratuitos e sem formalismo, facilitam o desenvolvimento e a generalização das interferências na vida das pessoas.

Há exemplos, nos Juizados Especiais, de pedidos com características peculiares: litígio envolvendo duas invasoras de uma propriedade alheia, cada uma querendo ocupar parte dessa propriedade. Na análise do caso, constatou-se que, de direito, nenhuma delas tinha “posse justa” sobre o imóvel em disputa. As duas mantinham posses injustas pela clandestinidade. Como, no caso, a posse injusta de uma era melhor do que a posse injusta da outra, houve a conciliação.

Daí decorre a importância de se não esquecer que há questões sociais (emergentes de fato) que comumente acontecem e das quais há que se encontrar soluções, dentro do ordenamento jurídico. Se de um lado é possível que esses fatos – interesses primários em conflito (disputa de posses injustas e contrárias ao direito) -, sejam conhecidos pelo Poder Judiciário, outros haverá em que não será possível abstrair a situação de ilegalidade. Em outro caso recente, ingressado no ano de 2000 nos Juizados Especiais de Curitiba uma senhora pretendia ser restituída do valor correspondente a R$ 200,00. Informou, na audiência de instrução e julgamento, ter pago esse valor como “propina” ao instrutor de uma auto-escola que, em contato com funcionários do Departamento de Trânsito, a fariam passar no exame de habilitação. Essa senhora “foi buscar lã e voltou tosquiada”: houve, pelo juiz de Direito que colheu as informações, a requisição para instauração de inquérito para apurar a corrupção, onde já se determinou o indiciamento da autora e do empregado da auto-escola.

Note-se que o Poder Judiciário, por meio dos Juizados Especiais, volta a ser procurado pela população mais simples. Essa procura, dependendo do enfoque de análise, retrata o lado positivo que decorre da facilitação do acesso à justiça. Operou-se, por meio dos juizados, o resgate das linhas de comunicação entre a população e o juiz. Disso advém um prestigiamento do Poder Judiciário, que volta seus olhos ao povo. Por outro lado, a desmistificação do Judiciário e a simplificação dos procedimentos dos Juizados Especiais trouxeram, também, a idéia de judicialização de relações sociais ilícitas, embora aceitas pelo grupo social. Aqui, o Poder Judiciário terá que estudar formas de intervir e coibir esses atos.

Cada um dos pedidos oriundos da facilitação plena de acesso aos Juizados Especiais indicará o caminho: algumas situações serão possíveis de conhecimento e apreciação, outras, pela absoluta impossibilidade jurídica ou ilicitude, deverão ser obstadas. É importante o destaque em relação à judicialização de relações sociais ilícitas, na medida em que o Poder Judiciário, por meio dos Juizados Especiais, se instala em bairros, praias, favelas; com isso, a expectativa é de que as relações ilícitas venham a aflorar com mais intensidade. Por ora, descabe aprofundar a análise desses fenômenos, que poderão ser objeto de pesquisas futuras, com o devido estudo e acompanhamento. Reafirma-se, entretanto, a advertência no sentido de que o não conhecimento de algumas dessas causas, embora hipoteticamente ilícitas, pelo Poder Judiciário, poderá incentivar novamente o caminho da anomia já existente em várias comunidades brasileiras.

A “justiça paralela” acaba por ser rápida e efetiva. Se não forem estabelecidas metas para prestar um serviço público relevante e combater essa apatia e essa falta de indignação e ação, corremos o risco de ter aquela justiça do morro como a nossa justiça. As alternativas estão por ser traçadas. Um Poder Judiciário forte é fundamental e a responsabilidade por soluções tem recaído sobre esta geração que a omissão (e apatia) de gerações passadas deixou em cheque. Não é de se admitir a ruptura do estado de direito, mas também não se pode deixar de atender a população em seus anseios, sob pena de incentivar a procura por soluções alternativas à margem do direito

Roberto Portugal Bacellar

é presidente da Associação dos Magistrados do Paraná.

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