A sucessão presidencial, com a substituição de um dos perfis mais reluzentes da elite intelectual do País por um homem de origem humilde e educação rudimentar, adiciona às naturais conotações que o fato sugere um efeito de alto impacto para a vida institucional: a alteração da radiografia do poder, cujos reflexos se projetarão sobre o próprio sistema de governo. Haverá diferenças de forma e fundo no exercício do presidencialismo. A era Cardoso ficará marcada pelo selo do “presidencialismo imperial”, com sua mão forte e capaz de ditar a pauta política, monitorar articulações e controlar decisões congressuais. A era Lula, pelo conjunto de significações que o presidente eleito encarna, aponta para a emergência de um “presidencialismo parlamentarista” na esteira de um processo de descentralização do poder.

Sua Excelência, convenhamos, vai ter de lidar, inicialmente, com as próprias limitações do perfil não afeito a experiências administrativas na área pública e alheio a decisões impostas pela complexidade inerente ao governo de uma nação. É lógico e também salutar que o novo presidente procure compartilhar decisões com os quadros próximos, na tentativa de administrar com a idéia de mais consenso e menos erro. Lula tem estilo centralizador, porém esse traço só será usado mais adiante, quando tiver suficiente conhecimento do manejo dos problemas. Como é considerado uma “esponja”, capaz de absorver rapidamente questões que lhe são expostas, dá para divisar imagens de Lulas em seqüência, sobrepostas, uma acima da outra. O eixo presidencial seria, deste modo, o primeiro da roda do poder.

O enclave em torno do ex-metalúrgico formaria o segundo eixo. Trata-se do núcleo duro, preparado para dizer não e salvaguardar a figura do presidente, livrando-a de pressões rotineiras e criando condições para vencer os obstáculos. Estaria nesse círculo o grupo mais chegado, a partir de Dirceu, Palocci e Gushiken, que, atuando em áreas diferentes, formariam uma tríade poderosa. Dessa vertente sairiam, por exemplo, as nomeações para ocupação de um vasto espaço onde cabem 22 mil cargos. As estacas mais profundas do poder seriam fixadas por este eixo, o terceiro, constituído por uma força-tarefa técnica, em que contingentes de primeiro, segundo, terceiro e quarto escalões, agregando cerca de 5 mil pessoas, se postariam na vanguarda dos programas e ações. Nessa ponta, como sistema consultivo, estaria abrigado ainda o já anunciado Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, cuja atuação estará voltada para as esferas da discussão e da pressão sobre o Parlamento.

As forças políticas integrariam a quarta esfera do poder, e não a terceira, como, à primeira vista, se poderia deduzir. Aqui, cabe uma explicação. É evidente que o PT engendra um projeto de longo alcance, não se descartando a idéia de que as estratégias para viabilizá-lo podem estar a pleno curso, suplantando o tão acalentado sonho tucano de permanência de 20 anos no poder, idealizado pelo falecido Sérgio Motta. Ora, a maneira petista de abrir horizontes comporta, entre outras ações, a formação de quadros, a multiplicação de sementes sobre a terra adubada, para germinar uma densa floresta, além da construção e apropriação de um ideário. Nesse sentido, formar linhas para comandar as malhas administrativas é coisa mais inteligente do que privilegiar o setor político. Este é mutante e fisiológico ? portanto, não confiável. Aquelas, confiáveis e comprometidas com uma bandeira. A espinha dorsal do novo governo seria alinhada por integrantes de uma nova classe, a que podemos chamar de “brasilulas”, brasileiros embevecidos de grupamentos heterogêneos a quem se atribuiria a missão de moldar a cara da administração com a feição do coração petista e a aura do presidente.

O quinto elo do poder estaria repartido entre forças difusas, destacando-se as entidades intermediárias da sociedade, principalmente as capazes de abrir espaços de visibilidade e ressonância. Supõe-se que as organizações excluídas do “conselhão” de Lula passarão a reivindicar fatias de representatividade. Seu acolhimento no espaçoso leito do poder é algo previsível. Imprevisível, isso sim, será a resolução da equação que permeará as preocupações centrais da era Lula: como conciliar sacrifícios econômicos, pressões monetárias transitórias e, ao mesmo tempo, fortalecer a estrutura social, gerar crescimento econômico, aumentar emprego e proporcionar justiça social?

Se, no campo estético, o poder desfilará por espaços abertos, no território semântico, a tecnodemocracia, de fundo econômico, dará vez a uma organodemocracia social. Sai do campo de visão o símbolo de uma moeda e entra na paisagem o retrato de um gigantesco colchão social.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautorq@gtmarketing.com.br

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