O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, pode até não se dar conta, mas seu perfil cabe direitinho no figurino do líder carismático talhado pelo populismo. Lula adquiriu o hábito, hoje impregnado no espírito, de dialogar diretamente com o povo, sem representantes e processos burocráticos. Getúlio Vargas, o nosso maior cultor do populismo, chegou a pregar a necessidade de “abolir os intermediários entre o povo e o governo, ou seja, partidos políticos e grupos de pessoas ajustadas na defesa dos próprios interesses”. O calejado ditador queria um governo de portas abertas para receber diretamente do povo os seus reclamos.
Os tempos mudaram e as condições para a emergência de um modelo populista, pelo menos sob a moldura clássica, se tornam escassas. Mas que há algum DNA perdido daquele modelo que também consagrou Lázaro Cárdenas, no México, ou mesmo Perón, na Argentina, isso há. Se não pelas especificidades, mas pelo arcabouço geral, certas semelhanças podem ser encontradas entre os populistas de ontem e os neopopulistas de hoje. No caso mexicano, a meta consistia em reequacionar a economia do país com um modelo que não fosse estribado unicamente na vertente socialista ou nos moldes capitalistas. Cárdenas, que governou o México, entre 1934 e 1941, inspirado na Revolução Mexicana, conseguiu a convivência entre burguesia e proletariado dentro de um projeto nacional pactuado para causar benefícios aos dois lados.
Sob tal pano de fundo histórico, começamos a distinguir o esforço de Lula para fazer sentar-se à mesma mesa setores produtivos, representações políticas e entidades intermediárias da sociedade. O pacto social de Lula, no mesmo estilo que Tancredo Neves queria fazer há 17 anos, e que o presidente José Sarney procurou, sem êxito, implementar, boicotado que foi pela CUT, não deixa de ser um instrumento revivificado do velho modelo adotado por antigos populistas ou por formas mais recentes, como a do pacto espanhol. A idéia-mestra é a do Pacto de Moncloa, articulado pelo Governo de Adolfo Suárez no contexto da redemocratização espanhola, em 1977, que consistiu no compromisso dos partidos para administrar a crise econômica do país. Lula quer o mesmo.
Vai conseguir consenso? Difícil. O mais provável é que ocorram “pactos localizados”, acordos pontuais, específicos, setorizados, o que, convenhamos, já será uma grande coisa. A complexidade para se chegar ao consenso se deve, ainda, ao caráter individualista da política brasileira. No caso da Espanha, o acordo foi possível em razão da força programática dos partidos, o Partido Socialista Operário Espanhol, o Partido Comunista e a União Centro Democrática, que acordaram a respeito das matérias centrais, para garantir a governabilidade. No caso brasileiro, a fulanização política conduzirá as discussões para a esfera de interesses personalistas ou mesmo corporativistas. Será quase impossível conciliar, por exemplo, interesses sociais com metas de sistemas produtivos.
Da observação se extrai a conclusão de que o pacto de Lula, se não terá densidade pela débil teia de acordos entre parceiros, ganhará pelo menos força expressiva perante a opinião pública. Nesse caso, o pacto transferirá para Lula a capacidade de proteção de um escudo. Com ele Lula conseguiria formar aquela ponte direta com as massas, tão do gosto de Getúlio ou Perón, que, à semelhança de Vargas, imaginava o governo como a única entidade capaz de atender aos legítimos interesses dos cidadãos e da Pátria. A pressão social comandada pelo mito funcionaria como aríete contra a instituição política. Um perigo. Vejam como a história se repete. Não era essa a intenção de Collor quando, no auge da popularidade, procurando estabelecer contato direto com os “descamisados”, invectivou contra as elites, que considerava “todas adversárias”? Quem não se lembra do choramingo collorido: “Tenho apenas uma bala na agulha e não posso errar”? Quando Lula diz que não pode errar e também fustiga as elites (com as quais, aliás, governará), o cidadão começa a ver em flashback as sombras apavorantes do passado.
Esse ideário pode não aquecer o coração democrata de Lula. Mas certos acenos do presidente eleito em direção às massas e os tijolos de sua história bem justificam sua inserção no espaço populista. Oxalá, ele se livre do efeito embriagante do encantamento populista que tanto contaminou Collor, para quem a lealdade do Congresso Nacional ao presidente deveria ser uma questão de dever. Que Deus nos livre de tristes lembranças.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail:
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