O outro da norma: Como se a norma fosse a dobra do ordenamento

As leituras erotizadas de Tercio Sampaio, à medida que se abrem à zetética e aos manifestos transgressionais do surrealismo de Luis Alberto Warat, ao passo que se debruçam no prazer das imagens, apontam na direção metodológica de um discurso jurídico voltado ao diferente, ao inquietante, ao novo, ao que se joga contra o sujeito que o investiga, ao sabor da novidade. Lançam-se possibilidades de levar o pensamento jurídico ao extremo, ao questionamento de suas estruturas, de seu estatuto, abrindo espaço às invisibilidades abjuradas e aos movimentos enclausurados da técnica. Coordenados com os discursos dos filósofos de angústia, traduzidos pela experiência do fora (Blanchot, Bataille, Nietzsche, Foucault e Deleuze), do impensado e da possibilidade de transgressão, desabrolha-se, então, a possibilidade de um direito erotizado, de um discurso jurídico de transgressão, que se posta a desdobrar-se na direção do ?outro da norma?, da norma vista na sua negação, na sua morte, no seu choque com o inesperado. É preciso, além de atentar às preleções inovadoras desses dois pólos da jusfilosofia brasileira, olhar para os atuais problemas da dogmática jurídica e sua incapacidade de coadunar um discurso de conservação anacrônico com os problemas jurídicos contemporâneos. Há uma série de questões que atualmente não são enfrentadas adequadamente pelo direito, sobretudo, em razão de seu apego natural a um discurso eminentemente conservador (não retrógrado), incapaz de lidar com uma postura diferente de homem, fragmentado, disperso, inconciliável consigo mesmo, com outra espécie de valores, com uma diversa constituição social, em suma, com outro propósito e outros objetivos interindividuais. A jusfilosofia não consegue postar suas reflexões para este direito atual, claramente desacomodado. Este discurso, confeccionado no século burguês, forjadamente individualista, proprietário e paternalista, e reconformado pelas teorias críticas do século XX, não está preparado para uma sociedade com outra ordem de patrimonialismo (imaterial, informático, ou informal, por exemplo), com outra ordem de imagens no espaço público (efêmeras e trabalhadas em torno da beleza ou do erótico), com outra esfera de relações (marcada pela frivolidade e não pela necessidade ou utilidade), com outra modalidade de transferência de signos (eminentemente coletiva), com outros discursos, desejos, juízos, raciocínios, etc.

O discurso jurídico de conservação, seja na origem positivista, seja na re-enunciação crítica, pretende conceituar, instrumentalizar, sistematizar comportamentos, e fazer da norma o seu imperativo. O sentido do direito se restringe, ainda nos dias de hoje, à Erhaltung (conservação). Em nome da distribuição de riquezas, da luta contra a exploração, da emancipação do sujeito, a norma aparece nas discussões de vanguarda, ora como princípio, ora como valor, ora como condição de garantia. É a norma-garantia, a norma-comando, a norma-direção, a norma-programática, a norma-autorizada. Uma vez positivados os direitos fundamentais e sociais, o direito material, o direito processual e o saber criminológico, entre outros, fazem da norma a garantia mesma do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, a liberdade dada ao juiz na interpretação pelo uso alternativo do direito, a busca do sentido do homem no direito constitucional emancipatório, a necessidade de inserção dos excluídos na ética da libertação ou mesmo o reencontro da desalienação do homem nas teorias críticas, permanecem atreladas à noção da norma-governo, da norma que faculta, proíbe ou libera comportamentos, sempre conservacionista.

Foucault teve papel decisivo ao falar da norma a partir de seu exterior, da norma como processo, como prática, como normalização, da norma que interpela os homens na sua educação positivada para a sociedade, que os disciplinariza, que os controla e os torna dóceis, úteis, submissos e formatados. A norma-normalizante foge originalmente à ruptura do comando, e passa a ser investigada pelo arqueólogo através dos discursos e dos saberes constitutivos. O modal se apouca diante do outro, do negado pelos discursos científicos de poder, amesquinha-se na ênfase da cientificidade e dos processos estatais de controle biopolítico da vida. Foucault, de certo modo, dobra a norma na sua normalização, empurrando-a para um fora experimentado por outro discurso. Mas é preciso ir a um outro lugar, ao fora desde outro fora da norma, ao fora do fora da norma, desdobrá-la ao retorno desfigurado, lá onde o sentido da norma se constitui na ausência, no vazio, na impossibilidade de interiorização, enfim, lá no lugar da não-norma, que o direito erotizado, enquanto discurso constitutivo, procura esboçar.

O direito constitutivo, cujo estatuto da norma continua a ser o objeto de relevante perquirição, ainda que não exclusivo, procura traduzir a permeabilidade que o discurso jurídico admite de se sujeitar a outras possibilidades, ao novo, ao fora, a toda essa experiência dos filósofos de angústia. O que é a norma: comando ou condicionante social? Por que não seria o instrumento de constituição do homem virtuoso e de seu stilus público diante de sua fragmentação, de suas diferenciações à maquinaria diversa de produção de sentidos? Por que não compor a norma diferentemente? Por que não examiná-la a partir do outro da norma? Por que não investigá-la sob outros modais: constituição social, individual, para um futuro? Por que não vê-la do avesso? Procurando, assim, evitar a norma esvaziada de sentido, tão comum no direito brasileiro, como, por exemplo, a norma que obriga o voto de maioridade? Qual o seu conteúdo constitutivo, senão a normalização ou o comando desvairado de conservação, ainda que sob as vestes da politização social? Por que não transgredi-la? Para essas tantas perguntas, sem procurar dar respostas, é necessário tracejar e perquirir esse outro da norma, driblada na sua univocidade.

O que é o outro da norma? Essa questão reverbera e instiga o pensar jurídico naturalmente a refletir sobre o sentido do direito. O sentido do direito se constrói a partir da norma. A norma mantém, a norma estrutura, a norma estabiliza papéis sociais e expectativas ao sabor das diversas interpretações, desde o materialismo marxista à sistematicidade luhmaniana. A norma é o que garante a coexistência em sociedade, mas ao mesmo tempo é a garantia da segurança e da certeza dos homens nos comportamentos intersubjetivos. Nessa perspectiva, a norma não é apenas limitação, mas é coordenação de comportamentos esperados e estrutura reflexiva, é conservação. A norma mantém, e, por isso, o discurso jurídico se reproduz para cumprir, ainda que de maneira politizada, igualitária e democrática. Mas o que é o outro da norma, já que o homem contemporâneo tem seus outros? O homem moderno se padronizava a partir de algumas variáveis: capital, saber, propriedade, consumo, exploração, etc. Hoje essa interpelação hipotética é impossível. Os problemas se colocam noutros termos. A multiplicidade subjetiva impede, inclusive, as mesmas variáveis. Como pode a norma normatizar, aqui vista como faculdade, proibição ou liberalidade? Foucault denunciou suas invisibilidades, sua discursividade que sob as vestes da cientificidade normaliza. A norma programa os indivíduos e delimita condutas para além de seus modais; vigia, disciplina e controla. Todavia, por que não uma norma que constitua, que funde, que crie a realidade? Por que não uma norma que constitua à medida que se negue enquanto norma? O pedagogo se aniquila na relação educacional, como recurso de ilustração de seu receptor. Por que não um discurso constitutivo que seja a transgressão da norma? Por que a norma não-normatizada, não-normalizada?

Uma norma como experiência interior. O fora da norma, a norma perfurada e cauterizada no seu sentido contratual, que lhe define como essência, que a oportuniza desde um outro que a cria. A norma entreaberta no horizonte de si mesma, entre a clássica objetividade estrutural e a subjetividade constituinte, entre a norma estrutural e o ser normatizante, já que o outro da norma lhe doa sentido. Mas o outro da norma não é a ausência de norma, não é a lacuna. A lacuna não é ausência de norma, e isso a jusfilosofia há muito evidenciou, mas é a norma ausente de seu sentido constituído, e, por isso, é tão facilmente manipulada. A lacuna é fria e re-significada pelo ser. O ser está ausente, uma não-norma fundamentada. Há apenas o seu rumor, o seu murmúrio, o seu silêncio. Uma espécie de vazio da norma. A norma é o que suspende, é o que interrompe a cadeia mobiliária de sentidos. É o fora à espreita do sentido que a arrebata, é uma forma de ser na experiência. Então, a norma não estrutura, constitui: norma constitutiva. A norma erotiza o sujeito, porque ele é o limite de sua erotização, e o ser se experimenta pela norma, que é o seu limite. O ser é norma porque se constitui. A norma choca, e, então cria, por isso, à medida que o discurso jurídico se realiza na norma, ele existe, ele funda seu espaço de realidade. É o espaço do direito criado, é o espaço jurídico irreconciliável com o sujeito que o produz. O tradicional postulado, drasticamente estendido pela leitura kelseniana, de que o direito é o dever-ser espelhado do ser não se consubstancia nessa complexa multiplicidade do homem contemporâneo. Este dever-ser prisional é a norma criada, é a realidade do jurídico.

O que se entende por esse outro da norma que pode doar sentido? A resposta deve ser buscada pelo reconhecimento da idéia de alternativa. O outro é o discricionário, cria sentidos, que são próprios ao sujeito, mas lhe podem ser completamente distintos. É a norma desabrigada de sua condição imanente, desaçaimada de seu postulado de conservação. A norma é uma prega, um fora constitutivo no mundo, é um desdobro em direção ao exterior, ?como se a norma fosse a dobra do ordenamento?, tal quisera Deleuze que ?o navio fosse a dobra do mar?. A norma a partir do fora é a norma a partir desse outro de todos os mundos jurídicos que Blanchot fende no próprio mundo da literatura. Se o enredo e as personagens existem e se constituem como a realidade da literatura desde um fora da obra, as normas e a sua constituição se conformam como a realidade do discurso jurídico desde uma dobra do fora. É nessa medida que se fala de um outro da norma, uma norma dessubjetivada da intimidade do jurista a partir do fora do direito, de sua impossibilidade. Trata-se de um ?deixar vir à tona?, um vir à superfície fora do eu jurídico e não do eu jurista, fora de si mesmo, por um desdobrar ininterrupto das invisibilidades que se travam no espaço jurídico e no fora, na sua impossibilidade. Foucault lançou a correlação epistêmica entre o ?ser-linguagem? e o ?ser-luz?, entre o ?diz-se? e ?vê-se? como uma exterioridade marcada pelo conflito das forças para além de si mesmo. Surveiller et Punir destaca a vinculação entre a legislação punitiva do discurso criminal, seus enunciados de delinqüência e anormalidade, e a prisão, a célula como lugar de visibilidade: o panoptismo benthaniano. Folie et Déraison por sua feita denuncia a ligação entre o asilo (vê-se), como espaço de sustentação material da loucura, e a psiquiatria como propulsora de enunciados de desrazão e exclusão. Já La Naissance de la Clinique enlaça a visibilidade da clínica como lugar de interiorização da doença e humanização da medicina e seu enunciado pela anatomia patológica.

O outro da norma é uma não-relação, ou como quisera Deleuze, uma relação disjuntiva, já que não é aniquilação da norma, mas o seu outro, a sua exterioridade, que a constitui e determina variados sentidos. É um dentro constituído pelo fora, por uma operação fora, por isso, é um mundo mais ?longínquo do que qualquer mundo exterior, mais profundo do que qualquer mundo interior?. É o lugar por excelência do não-estratificado, é um espaço anterior, de singularidades e o conflito turbulento de forças que o levam à crítica, à criação e à sua constituição. Tem-se um espaço de devires, de substâncias amorfas, de um emaranhado de posições, de palavras indefinidas, de enunciados desordenados à espera da oportunidade racional do homem, de uma razão provocativa, ferina, e, por essa razão se fala numa ?paixão do fora?, tão cultuada por Bataille. Não é um lugar de corpos nitidamente visíveis ou de pessoas que falam à toa, mas de murmúrios, de forças que se realizam num plano de imanência. Ao sair para o fora, o discurso jurídico seleciona, particulariza, redistribui fragmentos, pressiona subjetividades e os traz à superfície de seu próprio ser. O outro da norma é em parte a norma constitutiva, impregnada de virtualidade e praticidade. O seu outro é o desconhecido, é o que recusa todas as formas construídas pelo conhecimento tradicional, como a presença, a identidade, a unidade, o ponderação, etc. O outro da norma é o neutro e o estrangeiro que existe na interioridade da norma. São outras possibilidades que a imanência do pensar jurídico descobre nas suas andanças pela subjetividade exterior. É a validade posta em questão, bem como a não-validade, é a eficácia refigurada e a não-eficácia, é o contraponto atual da virtualidade. Em suma, ao se falar no outro da norma se quer a inacessibilidade do eu, a estranheza projetada pelo choque do inesperado, um outro que tagarela, verborrágico, que se impõe ao sujeito desde um fora, e que está fora de tudo e antes de tudo (como um rumor infinito), e, portanto, jamais está afeto ao conhecimento, senão quando negado: é o não-visível que a palavra jurídica carrega consigo.

Pensar o outro da norma como uma experiência do fora é uma tentativa de projeção de uma outra perspectiva para o discurso jurídico tradicional, é a procura da linha de fuga que faça o discurso correr de si mesmo para o neutro, para o lugar da impossibilidade, para o desconhecido. A recepção dessa experiência exterior abre caminhos para se pensar num discurso jurídico constitutivo, e, nessa medida transgressional, que rache, que fragmente seus aportes e se torne apto a compreender o mundo atual, o homem atual, naturalmente esquizofrênico, plural e suscetível à maquinaria dos desejos das formas e dos sentidos do mundo contemporâneo, tal como quisera Deleuze. Essa recepção permitirá então a sua desdobra para o fora a partir de sua interioridade, e trará à luminosidade um novo jurista, um novo homem das leis, um jurista curador de si, como se o homem fosse a dobra do mundo, como se o jurista fosse a dobra do ordenamento.

Guilherme Roman Borges é advogado; mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestre em Sociologia do Direito na UFPR; e professor de Economia e Direito Econômico no Unicenp.

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