O novo modelo (convencional) de controle abstrato da produção normativa doméstica

O sistema brasileiro de controle da produção normativa doméstica está passando por uma verdadeira revolução, pouco percebida pela doutrina brasileira (especializada) até o presente momento.

Até o advento da Emenda Constitucional n.º 45/2004 (que acrescentou o § 3.º no art. 5.º da Carta Magna) o texto constitucional era o único paradigma de controle da legislação interna no Brasil, mas a partir dessa mesma Emenda não é mais.

Ocorre que depois da possibilidade (estabelecida pelo citado art. 5.º, § 3.º da Constituição) de serem os tratados de direitos humanos alçados ao patamar das normas com equivalência constitucional (desde que é claro sejam aprovados por três quintos dos votos de cada Casa do Congresso Nacional em dois turnos), o sistema brasileiro de controle das normas de direito interno passou a contar com um novo paradigma do controle abstrato (para além, obviamente, do controle difuso): os tratados internacionais de direitos humanos com equivalência de emenda constitucional.

Percebemos este avanço (e desenvolvemos este novo tema) em nossa Tese de Doutorado da UFRGS (Capítulo II, Seção II) de 2008. Em resumo, o que ali defendemos é que se a Constituição possibilita sejam os tratados de direitos humanos alçados ao patamar constitucional, com equivalência de emenda, por questão de lógica deve também garantir-lhes os meios que prevê a qualquer norma constitucional ou emenda de se protegerem contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional.

Nesse sentido, a nossa tese foi no sentido de ser plenamente possível utilizar-se das ações do controle concentrado, como a ADI (para invalidar a norma infraconstitucional por inconvencionalidade), a Adecon (para garantir à norma infraconstitucional a compatibilidade vertical com um tratado de direitos humanos formalmente constitucional), e até mesmo a ADPF (para exigir o cumprimento de um “preceito fundamental” encontrado em tratado de direitos humanos formalmente constitucional), não mais fundamentadas apenas no texto constitucional, senão também nos tratados de direitos humano aprovados pela sistemática do art. 5.º, § 3.º da Constituição e em vigor no país.

Então, pode-se dizer que os tratados de direitos humanos internalizados com quorum qualificado passam a servir de meio de controle abstrato (de convencionalidade) da produção normativa doméstica, para além de servirem como paradigma para o controle difuso.

Quanto aos tratados de direitos humanos não internalizados pela dita maioria qualificada, passam eles a ser paradigma apenas do controle difuso de convencionalidade (pois, no nosso entendimento, os tratados de direitos humanos não aprovados por tal maioria qualificada são materialmente constitucionais, diferentemente dos tratados aprovados por aquela maioria, que têm status material e formalmente constitucionais).

Em outras palavras, o que nós ineditamente defendemos (e não vimos ninguém fazê-lo até o momento) foi o seguinte: quando o texto constitucional (no art. 102, inc. I, alínea a) diz competir precipuamente ao Supremo Tribunal Federal a “guarda da Constituição”, cabendo-lhe julgar originariamente as ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) de lei ou ato normativo federal ou estadual ou a ação declaratória de constitucionalidade (Adecon) de lei ou ato normativo federal, está autorizando que os legitimados próprios para a propositura de tais ações (constantes do art. 103 da Constituição) ingressem com tais medidas sempre que a Constituição ou quaisquer normas a ela equivalentes (como, v.g., os tratados de direitos humanos internalizados com quorum qualificado) estiverem sendo violadas por normas infraconstitucionais.

A partir da Emenda Constitucional 45/04, é necessário entender que a expressão “guarda da Constituição”, utilizada pelo art. 102, inc. I, alínea a, alberga, além do texto da Constituição propriamente dito, também as normas constitucionais por equiparação.

Assim, ainda que a Constituição silencie a respeito de um determinado direito, mas estando este mesmo direito previsto em tratado de direitos humanos constitucionalizado pelo rito do art. 5.º, § 3.º, passa a caber, no Supremo Tribunal Federal, o controle concentrado de constitucionalidade (v.g., uma ADI) para compatibilizar a norma infraconstitucional com os preceitos do tratado constitucionalizado.

Assim, a nossa conclusão é a de que todos os tratados que formam o corpus juris convencional dos direitos humanos de que um Estado é parte servem como paradigma ao controle de convencionalidade das normas infraconstitucionais, com as especificações que se fez acima: a) tratados de direitos humanos internalizados com quorum qualificado (equivalentes às emendas constitucionais) são paradigma do controle concentrado (para além, obviamente, do controle difuso), cabendo, v.g., uma ADIn no STF a fim de invalidar norma infraconstitucional incompatível com eles; b) tratados de direitos humanos que têm apenas “status de norma constitucional” (não sendo “equivalentes às emendas constitucionais”, posto que não aprovados pela maioria qualificada do art. 5.º, § 3.º) são paradigma apenas do controle difuso de convencionalidade (v. Mazzuoli, Op. cit., p. 236.).

Ocorre que os tratados internacionais comuns (que versam temas alheios a direitos humanos) também têm status superior ao das leis internas. Se bem que não equiparados às normas constitucionais, os instrumentos convencionais comuns (como sempre defendemos, com base no art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969) têm status supralegal no Brasil, posto não poderem ser revogados por lei interna posterior, como também estão a demonstrar vários dispositivos da própria legislação brasileira, dentre eles o art. 98 do Código Tributário Nacional (verbis: “Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”). Neste último caso, tais tratados (comuns) também servem de paradigma ao controle das normas infraconstitucionais, posto estarem situados acima delas, com a única diferença (em relação aos tratados de direitos humanos) que não servirão de paradigma do controle de convencionalidade (expressão reservada aos tratados com nível constitucional), mas do controle de legalidade das normas infraconstitucionais.

Portanto, as justificativas que se costumam dar, sobretudo no Brasil, para o descumprimento das obrigações assumidas pelo Estado no plano internacional, são absolutamente ineficazes à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos e, agora, pela própria ordem constitucional brasileira, que passa a estar integrada com um novo tipo de controle das normas infraconstitucionais: o de convencionalidade. Esta é a grande novidade do sistema de controle do direito brasileiro atual.

Valerio de Oliveira Mazzuoli é doutor summa cum laude em Direito Internacional pela UFRGS. Mestre em Direito Internacional pela Unesp. Professor adjunto de Direito Internacional da UFMT. Autor, entre outros, do Curso de Direito Internacional Público (3.ª ed.) da Editora Revista dos Tribunais.

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