Ninguém põe em dúvida a existência do Estado, mas há generalizada dificuldade quando se trata de explicar sua natureza.
Há quem procure entendê-la como resultado da força – física, psicológica ou intelectual – pela qual uma ou algumas pessoas subordinam as demais e se arvoram, ainda, o poder de estabelecer as regras para o exercício dessa subordinação. São os regimes políticos totalitários, cuja característica comum é pretenderem a submissão do Direito ao poder ilimitado da autoridade. Símbolo dessa posição é a escravização do Sexta-Feira por Robinson Crusoe.
Há quem a interprete, ao contrário, como resultante de um pacto entre os cidadãos, em razão do qual as vontades individuais livremente cederiam parte de seu poder decisório a uma vontade geral, em troca de benefícios comuns. Essa concepção foi simbolizada na negociação entre Robinson Crusoe e o comandante do navio inglês, segundo a qual aquele ofereceu segurança e este, em compensação, lhe garantiu o livre e gratuito regresso à Inglaterra.
A melhor visualização do problema é, porém, aquela segundo a qual o Estado não se origina nem da violência dos poderosos, que jamais seriam suficientemente poderosos para tanto, nem de um contrato social, um consenso que jamais existiu, mas o Estado é uma decorrência necessária da natureza gregária do ser humano. Vivemos em sociedade porque, de acordo com nossa natureza, não podemos viver sós. Somos essencialmente solidários, não solitários. O que varia no tempo e no espaço é apenas a forma de organização da sociedade humana.
No convívio, imposto pela natureza humana, a liberdade do cidadão precisa ser conciliada com a liberdade da autoridade – o poder – e a liberdade de cada um precisa ser conciliada com a liberdade dos demais. De todas as maneiras, é indispensável preservar a liberdade de todos, pois eliminá-la seria o mesmo que eliminar o próprio homem.
Mas é uma experiência eterna que todo homem, revestido de autoridade, é capaz de abusar dela – e irá até onde encontre uma barreira (Montesquieu – De I?Esprit des Lois XI, IV – 1748), observação que poderia ter sido estendida, com o mesmo grau de validade, ao exercício da liberdade pelos não-revestidos de autoridade. O equilíbrio das relações humanas na sociedade política só é possível quando há respeito às liberdades individuais. Se a autoridade estatal abusa no exercício de sua liberdade, de seu poder, surgem as diversas formas de despotismo; se o indivíduo ultrapassa os limites de sua liberdade, temos as diversas formas de anarquia. Despotismo e anarquia são os extremos do abuso da liberdade por parte da autoridade ou do cidadão. Ora, o excesso de liberdade, quer do indivíduo, quer do Estado, conduz ao excesso de escravidão (Platão – República – VIII 564), ou seja, à destruição da liberdade. É imprescindível, por isso, uma delimitação do campo de exercício das liberdades, e os limites extrínsecos a esse exercício, impostos quer aos cidadãos quer à autoridade, são e só podem ser traçados pelo Direito.
A conciliação dos arbítrios só é viável graças ao Direito, que também não é, portanto, fruto da vontade dos detentores momentâneos do poder, mas, outra vez, decorrência da natureza humana. Estado e Direito são instrumentos de realização dos fins humanos. Como o Estado não tem o poder de limitar arbitrariamente as liberdades individuais, não tem também o poder de gerar o Direito a seu exclusivo critério, mas é apenas encarregado de implantá-lo na sociedade da melhor forma possível. Mais do que isso, além de não ter o poder criador do Direito está tão sujeito a este quanto os próprios cidadãos, contrariando os que pensam que seria contraditório admitir um poder limitado pelo Direito (J. Austin, Leituras de Jurisprudência, I, 270).
Da necessidade de imposição da regra jurídica tanto às pessoas quanto às autoridades decorre o conceito de Estado de Direito, aquele em que as pessoas só podem ser obrigadas a fazer ou deixar de fazer alguma coisa em virtude da lei, por elas mesmas direta ou indiretamente traçada, e as autoridades só podem exigir dos cidadãos o cumprimento daquilo que tiver sido previamente estabelecido em lei. A cunhagem dessa expressão, Estado de Direito, significando o governo da lei, em oposição ao governo dos homens, é atribuída a Roberto von Mohl -Die Polizeiwissenschaft nach den Grunds-tzen des Rectsstaates – em 1832, mas passou a ser adotada sistematicamente em Direito e em Política.
Além da eliminação da vontade arbitrária do poderoso como fonte de obrigação, constituem pressupostos do Estado de Direito o reconhecimento dessa faculdade exclusivamente à regra legal, o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, a submissão da administração pública ao império da lei, com a contrapartida do reconhecimento de direitos públicos subjetivos, ou seja, direitos do cidadão em face do Estado, e, finalmente, a aplicação do princípio da tripartição dos poderes, mecanismo indispensável ao controle da ação da autoridade, para evitar seus desmandos.
Essa formatação do Estado, que respeita e preserva as liberdades individuais, pode, no entanto, ser violentada por autoridades que pretendem sobrepor-se ao Direito – e disso são manifestações recentes o nazismo, o fascismo e o socialismo, regimes políticos que pretenderam conceder à autoridade poderes sobre os cidadãos, com total desconsideração dos limites traçados pela regra jurídica. Essa mesma formatação do Estado pode ser também violentada por indivíduos que pretendem exercer sua liberdade em desrespeito aos limites traçados pelo Direito. A tendência ao anarquismo, no plano individual, é assim a contrapartida da tendência ao despotismo na ordem política.
A manifestação social contra o regime da lei numa determinada nação pode se caracterizar como uma revolta grupal ou uma revolução. O que distingue uma dessas formas de oposição ao sistema em face da outra é que, na revolta, inexiste o objetivo de destruição ou substituição abrupta do sistema político-jurídico vigente, enquanto, na revolução, esse é precisamente o objetivo prevalente. Revoltados são os injustiçados ou aqueles que se sentem realmente injustiçados, revoltados são os insatisfeitos com a ordem social, que buscam solução das injustiças ou das causas de suas insatisfações dentro e segundo as regras do sistema em vigor. O revoltado pode chegar ao golpe de Estado, à substituição da pessoa de mandatários; respeita, porém, as regras básicas das instituições políticas. Revolucionários, ao contrário, são os que buscam a tomada do poder, de forma normalmente violenta ou sob ameaça de violência, tendo por escopo obter a transformação da estrutura do Estado e da regra jurídica. O pretexto revolucionário é sempre a procura de um sistema político-jurídico mais justo, mas esse conteúdo não é fundamental à caracterização do movimento como revolucionário. Há revoluções que podem ser, ao menos a posteriori, rotuladas como justas e outras como injustas, mas ambas são, de qualquer forma, revoluções. Porque visam à substituição da ordem jurídico-política, as revoluções culminam não apenas na tomada do poder administrativo, mas se voltam imediatamente para a formatação constitucional e legal do País, assim como de seu sistema judiciário.
As revoluções obedecem a um processo de maturação lento e gradativo. Há sempre uma contestação ideológica da ordem constituída, estimulada por um ou alguns líderes, figuras messiânicas que prometem um novo paraíso na terra. Usando símbolos e bandeiras, o líder e seus epígonos estimulam a reação contra a ordem social, jurídica e política vigentes, enfrentam e buscam desmoralizar as autoridades constituídas e as instituições existentes. Com freqüência, buscam e obtêm respaldo na religiosidade dos povos e em seu anseio de preservação dos direitos naturais do cidadãos. Assim, o movimento fermenta e a inércia natural das massas se transforma em mobilização, a mais das vezes hipnótica, freqüentemente sangrenta e muitas vezes suicida.
As revoltas podem eclodir repentinamente, mas não incluem esses ingredientes, porque, essencialmente, não estão pré-ordenadas à conquista do poder político.
Em todas as nações há revoltados, e em todas elas pode haver também revolucionários. Entre nós, podem ser identificados no momento pelo menos três grupos sociais manifestamente contrários ao status quo: os indígenas, os favelados e os se-dizentes sem-terra.
Os índios brasileiros não são revolucionários, embora manifestamente revoltados contra a situação histórica em que se encontram. Foram senhores absolutos de todo este território, de todas as suas fantásticas riquezas e belezas naturais, e viram-se de tudo privados pela força de recém-chegados, apenas porque intelectualmente mais desenvolvidos e belicamente mais bem equipados. Submetidos à condição de escravos e praticamente dizimados pela força ou pelas enfermidades contra as quais não dispunham de anticorpos, alguns foram adquirindo conhecimentos e habilidades antes exclusivas dos invasores.
Aos poucos foram se reaproximando ou sendo reaproximados de outros grupos aborígines remanescentes, habitantes de regiões remotas, que por isso não passaram pelo mesmo processo de dizimação ou assimilação de aptidões dos invasores. Hoje são todos revoltados contra a perda do território, a perda das riquezas naturais de que viviam, a perda do poder de que desfrutavam, a perda de sua excelente condição física original e o desaparecimento lento e gradativo de sua cultura. Em inúmeros gestos de violência coletiva, às vezes pífios ou meramente teatrais, com freqüência agressivos diante da autoridade pública do País, demonstram claramente sua revolta.
Mas os índios brasileiros não são revolucionários porque não pretendem, pelo menos agora, a tomada ou a retomada do poder político de que foram titulares, nem o desrespeito generalizado ou a ruptura do sistema jurídico nacional. São, porém, manifestamente revoltados contra o estado de coisas em que se encontram. Para mitigar as dores de suas feridas, os oriundos passaram a assegurar-lhes território demarcado, proteção militar e até proteção jurídica especial. Instalados então em áreas privativas, titulares de etnia e cultura próprias, falando língua específica, cultuando seus próprios deuses e obedecendo as suas próprias normas de convivência, estão, por certo, sendo preparados, talvez inconscientemente, mas pelo menos de forma muito imprudente, para um dia pretenderem a independência e quem sabe a retomada de tudo o que lhes foi sacado, inclusive o poder político da região. Então, sim, o que é hoje apenas revolta poderá transformar-se em movimento revolucionário, ou até guerra. E não estamos nos entregando a puro exercício de imaginação ou futurologia, pois nações vizinhas estão já vivendo fases bem adiantadas de processo histórico assemelhado. Também os favelados são manifestamente revoltados contra a condição social em que se encontram, como a precariedade de suas habitações e da infra-estrutura básica de suas vilas, os parcos rendimentos que conseguem, o baixo nível de educação e saúde de seus filhos. Para agravar a ruptura social, são usados e aproveitados pela demoníaca ação de produtores e comerciantes de drogas, que lhes propõem pacto segundo o qual eles fornecem mão-de-obra barata e corajosa em troca da receita financeira e da proteção de que tanto carecem.
Mas os favelados não são também revolucionários, porque não pretendem a tomada do poder nem a ruptura da ordem jurídica constituída, mas tão-somente a compensação de suas carências. Nem há probabilidade de que essa revolta se transforme em movimento revolucionário porque são conscientemente brasileiros que pretendem manter essa condição, sujeitos ao regime político e jurídico nacional, querendo apenas sejam reparadas as deficiências pelas quais se sentem agredidos e injustiçados.
Não é o que ocorre com os se-dizentes sem-terra. Ao contrário do que se passa com indígenas e favelados, não se trata de um grupo social homogêneo, unido pela cultura e raça, como os primeiros, ou pelas condições de pobreza, como os últimos, mas trata-se de um aglomerado de pessoas de todos os matizes. São sindicalistas, operários, funcionários públicos, estudantes e desempregados, habitantes de cidades ou de regiões rurais, até mesmo pessoas com propriedade imobiliária, que declaradamente contestam e pretendem derrubar a estrutura política e jurídica do País. O rótulo sem-terra é apenas um rótulo mesmo, uma bandeira, necessária para amalgamar o movimento, assim como os símbolos da foice e da bandeira vermelha, que provocam imediata associação com movimentos sangrentos da História recente. Equivocou-se, por isso, o presidente da República quando, num gesto magnânimo mas certamente inocente, ofereceu-lhes recursos financeiros para assentamentos rurais, ofereceu terra aos sem-terra, ofereceu a satisfação do objetivo explícito do movimento, pretendendo assim extingui-lo. Em troca, recebeu apenas acintosas manifestações de desrespeito e até ameaça de ocupação de sua propriedade. Equivocou-se, porque eles não são sem-terra nem pretendem apenas terra mas, em verdade, pretendem o lugar dele.
Utilizam-se do anseio natural do ser humano pela propriedade da terra somente como forma de cativar adeptos e ampliar o universo de revolucionários. Agridem frontal e brutalmente a ordem jurídica quando ocupam bens de outros cidadãos, ousando até a ocupação de bens públicos. Não se deixam inibir sequer pela mais grave legislação penal que condena a violência contra pessoas e os crimes contra a vida. Para demonstrar o grau de risco que estão dispostos a assumir, tomam a iniciativa de provocar cinicamente o confronto com as mais altas autoridades públicas. Tão poderosos já são e tão grave é a situação que, para coibir seus desmandos, não são mais suficientes policiais encarregados de zelar pela ordem interna, mas são necessários militares, cuja missão está dirigida à defesa do País contra agressores externos.
Foram beneficiados pela tibieza dos encarregados de manter a ordem, que, por motivação política, de raízes ideológicas ou meramente demagógicas, deixaram de coibir de pronto, e com a firmeza que se fazia necessária, suas primeiras invectivas, e procuraram tratar seus atos não como crimes, que na realidade são, mas como inocentes movimentos sociais, e tratar seus líderes não como delinqüentes, que na realidade são, mas como heróis nacionais. Contaram, ainda, com o habitual comportamento benevolente dos líderes religiosos e com a simpatia da imprensa. Certamente todos estão arrependidos agora da fragilidade inicial de sua reação. Mas já é tarde. O MST é hoje, indiscutivelmente, uma força ousada e poderosa que pretende a conquista do poder e a revisão da ordem jurídica vigente no País. Uma força revolucionária em marcha, à semelhança de outras que grassam em nações sul-americanas, inspiradas na falida e desastrosa experiência revolucionária bolchevista.
O MST oferece, enfim, elevado grau de risco político, pois, por sua natureza, agride o Estado de Direito: desrespeita intencionalmente as regras que possibilitam o exercício da liberdade pelos cidadãos e desrespeita as instituições e autoridades constituídas. A fim de que não haja arrependimento grave num futuro próximo, o bem da pátria exige seja posto um termo final, ainda que doloroso, a sua marcha revolucionária, que visa declaradamente a derrubada dos sistemas jurídico e político sob os quais vivemos.
Jacy de Souza Mendonça é professor na PUC-SP e na Unicapital/SP.