A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, desde sempre muito utilizada por nosso Judiciário à solução de controvérsias baseadas na fraude, confusão patrimonial, abuso de instituto, e demais argumentos que, fundamentados ou não da melhor maneira por nossos magistrados (não cabendo neste momento a discussão do tema), acaba por garantir a satisfação de créditos diante da descaracterização da autonomia patrimonial e limitação de responsabilidade, pertinentes às pessoas jurídicas.

O Novo Código Civil Brasileiro (Lei 10.406 de 10 de Janeiro de 2002), dentre outras inovações, vem sedimentar em seu artigo 50 a referida teoria que, diga-se, apresenta-se de forma muito mais assemelhada à original “Disregard Doctrine”, quando restringe ao desvio da finalidade e confusão patrimonial as hipóteses de desconsideração, em contrapartida àquela apresentada pelo Código de Defesa do Consumidor, o qual, em muito “confunde”desconsideração com mera responsabilização de atos. Vale lembrar que uma das características mais marcantes deste instituto, se não a sua primordial, é sua utilização em caráter excepcional.

Entretanto, apesar do rigor técnico de nosso legislador, ainda resta duvidosa a questão quanto ao momento processual pertinente à aplicação adequada e justa da teoria. Não há que se discutir, quando, desde o início da ação proposta, configuram no pólo passivo, os sócios/administradores da entidade jurídica, seja em litisconsórcio com esta ou não, vez que, desde então, suscitam-se os critérios objetivos ou subjetivos da desconsideração da pessoa jurídica para alcançar os bens particulares daqueles, a fim da garantia da futura execução, conferindo ao réu (sócio/administrador) a possibilidade de defesa em regular procedimento cognitivo.

No entanto, quando a teoria da penetração vem a ser considerada em fase de execução, para constrição judicial dos bens dos sócios, em justificativa à insuficiência do patrimônio da pessoa jurídica à satisfação do crédito devido, e aqueles só tomam conhecimento e oportunidade de defesa em fase de embargos à execução, insurge-se no descumprimento do princípio constitucional que confere direito ao devido processo legal e ampla defesa, consagrados no art. 5.º LIV e LV, respectivamente, da Constituição Federal. Se não veja-se, no processo de conhecimento que deu origem ao título executório em questão, figuravam nos pólos do litígio, credor e pessoa jurídica. Entretanto, em fase de embargos os sócios estão sendo chamados ao processo a responder por uma eventual constrição de seus bens, sem, no entanto, ter tido direito à defesa, pois não figurava no pólo passivo daquela cognição. Ademais, cabe ao credor, uma vez alegada existência dos pressupostos que justifiquem a desconsideração da pessoa jurídica, prová-las; no entanto, em fase de embargos à execução, estaria havendo clara inversão do ónus da prova, já que este recairia ao sócio/administrador da entidade.

Isto é, o despacho que, em execução e nesses termos, autoriza a constrição dos bens dos sócios, a fim de garantir juízo, até que, em sede de embargos, discuta-se a desconsideração da pessoa jurídica, cerceia qualquer tipo de defesa legítima por parte dos sócios/administradores.

Outrossim, a tentativa de responsabilizar os sócios, com base em título executivo proveniente de cognição da qual não configuravam em pólo passivo, demonstra, ainda, descumprimento aos limites subjetivos da coisa julgada, regidos em nosso ordenamento pelo artigo 472 do diploma Processual Civil: “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.”

Uma vez proposta ação em face de pessoa jurídica, finalizado processo de conhecimento, recoberto pela autoridade de coisa julgada, não há que se propor execução contra pessoa física (sócio) com base neste título executivo. Assim, como bem considera Fábio Ulhoa Coelho:

“A desconsideração não pode ser decidida pelo juiz por simples despacho em processo de execução: é indispensável a dilação probatória através do meio processual adequado”.(1)

O entendimento de nossos tribunais ainda demonstra-se controverso em relação ao tema.

Não obstante a decisão proferida pelo ministro Ruy Rosado de Aguiar: “Condicionar a aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica a prévio pronunciamento judicial, importa torná-la inteiramente inoperante pelo retardamento de medidas cuja eficiência e utilidade depende de sua própria efetivação”(2) , a qual, sem dúvida, tem seu fundamento, entretanto deixa-se de ter razão quando prioriza-se a “efetividade do processo”deixando-se à mercê os direitos constitucionais do réu.

Entretanto, também é de posicionamento jurisprudencial consagrado, o entendimento contrário:

“PESSOA JURÍDICA – Teoria da desconsideração -Inaplicabilidade. Superação da regra do art. 20 que exige o devido processo legal. Impossibilidade de se alcançar o ente jurídico por dívida de sócio em simples despacho ordinátório da execução. -Mandado de Segurança concedido. A doutrina da superação ou desconsideração da personalidade jurídica traz questão de alta indagação exigente do devido processo legal para expedição de um provimento extravagante, que justifique invadir a barreira do art. 20 do CC. Não é resultado que se alcance em simples despacho ordinatório de execução, do arresto ou do mandado de segurança, todos em cognição superficial” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, rel. des. Sena Rebouças, RT 657/120). (grifo nosso)

“Admissível é o mandado de segurança para caçar ato judicial de arrecadação de bens em poder de terceiro, praticado em procedimento do qual não foi parte. A arrecadação de bens adquiridos por outros de sociedade controlada pela falida, cuja personalidade jurídica foi desconsiderada em face da auditoria realizada no curso do processo de falência da controladora, não pode ser efetuada sem a declaração judicial de ineficácia do ato, em ação revocatória ou noutra ação.”(Superior Tribunal de Justiça, relator min. Cláudio Santos, RT 725/147).

Ainda em atenção ao tema debatido, o projeto de Lei 2.426/2003, de autoria do deputado Ricardo Fiúzza, em trâmite junto à Comissão de Economia, Indústria e Comércio, embora merecedor de pequenas alterações, ressalta em seu texto a necessidade de “reservas”a serem observadas quando da aplicação da teoria da transparência. Salienta-se seu artigo 3.º, que numa tentativa de “poupar os bens particulares de empresários honestos”, traz à luz de nossa legislação uma possível solução à questão proposta quando consagra:

Art. 3.º: Antes de declarar que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens dos administradores ou sócios da pessoa jurídica, o juiz lhes facultará o prévio exercício do contraditório, concedendo-lhes o prazo de quinze dias para produção de suas defesas.

Parágrafo 2.º: Nos casos em que constatar a existência de fraude à execução, o juiz não declarará a desconsideração da personalidade jurídica antes de declarar a ineficácia dos atos de alienação e de serem executidos os bens fraudulentamente alienados.

Art. 5.º. O disposto no art. 28 da Lei n.º 8.078 de 11 de Setembro de 1990, somente se aplica às relações de consumo, obedecidos os preceitos desta lei, sendo vedada a sua aplicação a quaisquer outras relações jurídicas.

Art. 7.º. O juiz somente pode declarar a desconsideração da personalidade jurídica nos casos expressamente previstos em lei, sendo vedada a sua aplicação por analogia ou interpretação extensiva.

(grifo nosso)

A ideia consagrada nos referidos artigos, vem, mais uma vez, demonstrar a preocupação dos estudiosos de direito em tentar definir de forma mais rigorosa um procedimento específico para a justa aplicação da Teoria da Desconsideração.

Destarte, em nome da conservação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica e da efetivação do direito ao devido processo legal e ampla defesa, a constrição judicial de bens só poderá derivar de título executivo proveniente de cognição no qual o ” possível devedor”tenha figurado em pólo passivo.

Ainda, para darmos o devido valor à nossa legislação civil, que enfim positivou a teoria da desconsideração, e não voltar-se a ” banalizar”o instituto, há que se reconhecer e respeitar que a desconsideração de uma entidade jurídica e seus princípios norteadores, não é razão senão, para um justo processo de conhecimento.

Lisboa, 16 de março de 2004.

Notas

(1) COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 2., p.55

(2) Recurso Especial n. 86.502/SP, publicado no DJ de 26.08.96; RSTJ 90/280

Manoelle Brasil Soldati é graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba -PR. Mestranda em Ciências Jurídico-Empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa- Portugal.E-mail: manu_soldati@hotmail.com

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