O momento histórico da criação da “Escola da Magistratura” portuguesa (Centro de Estudos Judiciários de Portugal)

Na seqüência da Revolução de 25 de Abril de 1974, mudanças significativas levaram-se a efeito em todo o sistema judiciário português.

Cumpria-se, assim, o ponto do Programa do Movimento das Forças Armadas – comunicado ao País na madrugada do dia 26 de Abril – que propunha "medidas e disposições tendentes a assegurar, a curto prazo, a independência e a dignificação do Poder Judicial".

Em 2 de abril de 1976, a Assembléia Constituinte aprovou e decretou a democrática Constituição da República Portuguesa, que, em seu artigo 205, definia os tribunais como "órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo", e separou as carreiras da magistratura judicial e do Ministério Público.

A magistratura portuguesa era, até então, estruturada em carreira única; o Ministério Público servia como magistratura preparatória da magistratura judicial. Ingressava-se na magistratura do Ministério Público meconcurso meramente acadêmico após a licenciatura em Direito, e, depois de um número variável de anos como Delegado do Procurador da República (o equivalente, no Brasil, a Promotor de Justiça – na esfera estadual – e Procurador da República – na federal), realizava-se, perante uma banca ("júri") constituída por professores universitários e magistrados judiciais, novo concurso, igualmente teórico e diante de banca identicamente composta.

Álvaro Laborinho Lúcio, uma das grandes inteligências de Portugal, ex-diretor do Centro de Estudos Judiciários e ex-Ministro da Justiça, assim comentou o momento histórico da separação das carreiras do Ministério Público e da magistratura judicial: "Em vez de uma magistratura dependente, estruturada em carreira única e hetero-governada, surgem, acertando o passo pelas concepções há muito em curso por toda a parte, nomeadamente na Europa, duas magistraturas distintas com funções próprias, embora complementares, e recebendo a magistratura do Ministério Público, para além de sua tradicional esfera de atribuições, as que, por força tanto do texto constitucional como da sua própria lei orgânica, lhe cometem agora a defesa da legalidade democrática, a promoção e a realização do interesse social"(1).

Conseguintemente, passou-se a compor o quadro legal da nova organização judiciária portuguesa, afirmando-se o autogoverno das magistraturas, conforme deixava claríssimo, e.g., a Lei n.º 39/78 (Lei Orgânica do Ministério Público), que definia, em seu artigo 70, a magistratura do Ministério Público como "paralela à magistratura judicial e dela independente".

Com o rompimento da longa tradição de o Ministério Público ser a magistratura vestibular da judicial, tomou corpo a preocupação das autoridades portuguesas da área com a ação formativa de natureza prática profissionalizante.

Daí a instituição, pelo Decreto-lei n.º 714/75, de 20 de dezembro, do sistema de estágios como forma de recrutamento e formação de magistrados, os quais eram realizados em tribunais de primeira instância sob a orientação dos juízes que neles judicavam.

Todavia, o próprio Decreto n.º 714/75 acentuava sua natureza precária e experimental, tanto que o sistema de estágios foi revisto em menos de dois anos pelo Decreto-lei n.º 102/77, de 21 de março. Tornava-se necessária uma formação institucionalizada de magistrados, a exemplo do que vinha ocorrendo em França, pois se reconhecia ser insuficiente – pouco reflexivo e muito empirista – o processo de formação calcado tão-somente nos estágios em tribunais de primeira instância.

Consoante Laborinho Lúcio, com a separação das magistraturas, "abriu-se definitivamente a questão da formação dos magistrados portugueses, tendo-se optado por uma solução que aponta para uma institucionalização e profissionalização, através da constituição de um corpo de formadores especializado e da criação de um estabelecimento adequado e com competência própria ". Concluía, então, o mais destacado dos idealizadores do CEJ.: "Assim nascia o Centro de Estudos Judiciários!"(2).

Vinculado ao Ministério da Justiça, o Centro de Estudos Judiciários de Portugal foi criado pelo Decreto-lei n.º 374-A/79, de 10 de setembro, sucessivamente alterado pelos Den.º 264-A/81, de 3 de setembro; 146-A/84 e 146-B/84, ambos de 9 de maio; e 23/92, de 21 de fevereiro. Sujeito às regras orçae de prestação de contas estabelecidas para organismos dotados de autonomia administrativa e financeira, possui o CEJ. personalidade jurídica.

Além da formação profissional de magistrados judiciais e do Ministério Público, dedica-se também o CEJ. à investigação nas áreas de suas atividades formativa e da aplicação do direito.

O primeiro curso de formação de magistrados do Centro de Estudos Judiciários de Portugal teve início em 4 de janeiro de 1980, tendo-se implementado a investigação a partir da criação do Gabinete de Estudos Jurídico-Sociais em 1984 no Ministério da Justiça.

O CEJ. foi inspirado no modelo da Escola Francesa, "evoluindo de forma criativa e dinâmica, mercê da continuada elaboração e avaliação de uma teoria de formação de Magistrados", conforme destacou ARMANDO LEANDRO em seu discurso de posse como diretor do CEJ. em 1989.

Embora partindo da estrutura da Ecole Nationale de la Magistrature, criada em França em 1958 com a denominação de Centre National D’Etudes Judiciaires, o Centro de Estudos Judiciários de Portugal introduziu algumas inovações em sua sistemática formativa, como salientado pela psicóloga Anna Mestitz no excelente trabalho "La formazione professionale dei magistrati in una prospettiva comparata": "Quindi nel 1979 fu creato il Centro de Estudos Judiciários (CEJ) di Lisbona, adottando sia il modello di formazione elaborato dall’ENM, sia la sua struttura organizzativa (La Greca, 1984). Di conseguenza i due sistemi possono essere descritti congiuntamente, sottolineando peculiarita ed analogie. I portughesi hanno intatti introdotto alcune nodificazioni ed innovazioni nei tempi, metodi e contenuti. A questo proposito gli stessi dirigenti dell’ENM – intervistati nel febbraio 1987 – hanno affermato che i portughesi sono stati per certi versi piu bravi di noi"(3).

O exemplar trabalho de formação profissional desenvolvido pelo Centro de Estudos Judiciários tem sido destacado em vários encontros internacionais e em monografias sobre o tema.

Cite-se, nesse sentido, a exposição levada a efeito pelo professor brasileiro Ricardo Arnaldo Malheiros Fiúza no Seminário Internacional sobre "Formación y Perfeccionamento de Magistrados", promovido pela Universidade "Diego Portales" e pelo Instituto de Estudos Judiciais, em Santiago do Chile em agosto de 1988. Ao depois de analisar diversos sistemas de Formação de magistrados (França, Estados Unidos da América, Espanha e Portugal), os quais conheceu através de estágios, o professor mineiro sublinhou o método português, considerando-o o mais adequado ao Brasil: "De todo visto y estudiado, percebimos que el modelo portugués, adaptado a las peculiaridades brasileñas, seria el mas conveniente"(4).

Assim, a magistratura de Portugal, hoje desmembrada em magistratura judicial e em magistratura do Ministério Público, decorre de uma corajosa formação profissionalizante decorrente da Revolução dos Cravos, e que tem demonstrado ao mundo bons resultados. O futuro magistrado recepcionado, por rigorosa seleção, pelo CEJ. ali chega com preparação teórica básica desenvolvida pelas universidades, onde o acadêmico se ocupa do conhecimento do direito, aprofunda-se no estudo do pensamento jurídico e aprimora o seu sentido crítico. Ao acervo de conhecimentos acumulado na fase universitária, adiciona-se a carga formativa que distinguirá o jurista enquanto magistrado: exercita-se a tecnologia judiciária, estuda-se a relação do direito com o fato concreto, desenvolve-se o poder de decisão e a capacidade crítica do futuro magistrado.

Enfim, a institucionalização da formação dos magistrados se leva a efeito em Portugal, com muito êxito, um sonho distante no Brasil, onde o planejamento nessa área inexiste.

Notas

(1) "O magistrado hoje – actuação e formação", in Revista Crítica de Ciências Sociais números 18, 19 e 20, p.291/309, Portugal.

(2) Trab. cit., p. 299

(3) Revista DOCUMENTI GIUSTIZIZ, n. 09, 1988, p. 59/60.

(4) "Notícia sobre el ingreso en la carrera, perfeccionamento y formación de la magistratura judicial en el estado de Minas Gerais, Brasil", in Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia vol. 18, 1989, p.345/357.

José Maurício Pinto de Almeida é desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná e professor de Organização Judiciária da Escola da Magistratura do Paraná. 

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