O marco zero

Quando Lula assumiu o poder, no início de janeiro, fez um discurso em que reduziu a pó de traque a história do Brasil. Tudo, de certo modo, começava ali, com o fracasso de uma cultura do individualismo, do egoísmo, da indiferença perante o próximo, da desintegração das famílias e das comunidades. Somos, dizia ele, uma nação cuja soberania está ameaçada, enquanto aqui dentro vivemos uma “precariedade avassaladora da segurança pública, do desrespeito aos mais velhos e do desalento dos mais jovens. Transformemos – convocou a nação – o fim da fome em grande causa nacional.

Começava o marco zero do Brasil a partir daquele momento em que lançava ainda sem muitos contornos seu primeiro programa – o Fome Zero. Passou-se um ano e a prática demonstrou que nem tudo começou do zero. Aliás, algumas coisas sequer começaram. Outras, foram continuadas no mesmo ou piorado tom, a começar pelo referido desrespeito aos velhos. E o inadiável compromisso com o crescimento – depois, lá pela metade do ano, transformado em espetáculo – está ainda para acontecer.

Apesar de já ter tido tempo de aprender (não porque não possua diplomas acadêmicos, mas porque o exercício do poder também ensina) coisas que decerto não sabia, Lula segue fazendo discurso no mesmo tom. Cada dia faz uma promessa nova. E jura cumprir tudo o que prometeu. Ao discursar para a Liga Árabe, já quase no final de sua longa, inédita e histórica viagem ao Oriente Médio, Lula decretou marco zero também no jeito de fazer política e comércio no concerto internacional. Estamos criando (disse usando o plural majestático, sem meias palavras e pouco antes de visitar o ditador da Líbia desde 1969, coronel Muammar Kadafi) uma nova geografia política e comercial para o mundo. Tanta jactância deve ter pego experimentados governantes do conturbado Oriente Médio, cuja história se perde na escuridão dos tempos, de surpresa.

Bravatas geralmente não dão em nada. No dizer do ex-ministro das Relações Exteriores do governo de Fernando Henrique Cardoso, Celso Lafer, Lula está “jogando para a torcida”. E se jogar demais para a torcida, acabará afetando interesses nacionais. Ademais, torcida não ganha o jogo. Lula, observa o ex-ministro, tem uma tradição democrática, construída no exercício da liberdade de associação, mas em política externa “não podemos subestimar, mas também não podemos superestimar, o que significamos para os outros países”.

Lafer, imediatamente contraditado por defensores de plantão dos atuais detentores do poder, observa que pelas declarações do atual governo, a idéia é de que ele representa o marco zero também da diplomacia brasileira. Aliás, “a tradição política do PT guarda a idéia de que chegando ao poder eles são o marco zero de tudo, como a fundação de Roma, o nascimento de Jesus, o ano um da Revolução Francesa”.

Há, sempre segundo as críticas de Lafer, o risco de o governo Lula “se afogar no poço de sua própria pretensão em matéria de política externa”. Reduzir a relação entre países ricos e em desenvolvimento a “esse jogo patrão-operário é uma simplificação da realidade internacional”, onde as coisas são um pouco mais complexas. O ex-ministro colocou dúvida sobre a possibilidade de o Brasil participar, como Lula quer, do processo de paz no Oriente Médio. Líbia e Síria, segundo ele, “não são modelos de convivência coletiva”. Podemos fazer isso no contexto regional, mas no Oriente Médio a história é outra… e exige recursos de poder que o Brasil simplesmente não tem.

Houve um tempo em que, em todas as assembléias e reuniões, arautos da esquerda brasileira pediam uma nova ordem para tudo: nova ordem política, nova ordem econômica, nova ordem social, nova ordem para a informação e por aí afora. Com tanta novidade, nunca chegavam a detalhar o que queriam. Lula – referência de marco zero aqui e lá fora – quer uma nova geografia política. Mas qual?

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