VI Conclusão

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Diante de tudo quanto foi exposto pode e deve o membro do Ministério Público, quando isto lhe é faticamente possível, investigar diretamente fatos criminosos, principalmente quando se tratar de abuso de autoridade (a título de exemplo); é bom que se diga não ter o Ministério Público, muitas das vezes, condições de, motu proprio, levar adiante uma investigação criminal, até por carência de material, seja humano (investigadores, por exemplo), seja físico (viaturas, espaço físico apropriado, etc); quando houver dificuldades, nada impede, ao contrário, tudo indica, que seja requisitada a instauração de inquérito policial (ou termo circunstanciado na forma da Lei nº. 9.099/95) à autoridade policial respectiva, atentando-se para o fiel cumprimento da requisição e adotando-se as medidas criminais em caso de não atendimento (pode-se estar configurado, por exemplo, o delito de prevaricação), além da possibilidade de se configurar ato de improbidade administrativa (art. 11, II da Lei nº. 8.429/92).

Neste aspecto, importante é a observação de Enzo Bello, no sentido que “diante da escassez de recursos humanos e materiais do Ministério Público afinal a sua quantidade de membros e de estrutura física é ínfima em relação ao tamanho da sua demanda de trabalho -, cumpre a cada membro da instituição conferir um cunho seletivo às suas atividades profissionais (…), de maneira a atribuir uma índole prioritária aos casos em que se tratem de condutas delitivas cuja potencialidade lesiva seja capaz de ocasionar uma verdadeira disfunção social e atingir ou obstar os princípios, fundamentos e metas da República brasileira (isto é, os verdadeiros anseios e perspectivas da nossa sociedade)”(21).

O Conselho Superior do Ministério Público Federal (em 14 de setembro do ano de 2004) editou a Resolução n.º 77/04 que regulamenta os procedimentos de investigação criminal a serem observados pelos procuradores da República em todo o país.

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A norma interna define o procedimento investigatório criminal como um instrumento de coleta de dados para apurar a ocorrência de infrações penais, que servirá para a proposição de ações penais ou instauração de inquérito pela polícia.

Define-se que o membro do Ministério Público Federal poderá dar início ao procedimento valendo-se de qualquer meio, ainda que informal, mas terá que fundamentá-lo.

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“Caso surja a necessidade de investigação de fatos diversos dos que já estavam incluídos no procedimento, o procurador responsável terá que fazer um aditamento ou abrir um novo procedimento. Para assegurar a impessoalidade na condução das investigação, o procedimento será protocolado, autuado e distribuído. As partes envolvidas e terceiros diretamente interessados poderão ter acesso às apurações, excetuando os casos de sigilo. Nessa hipótese, o investigado terá acesso apenas aos documentos referentes aos atos de que ele tenha participado pessoalmente. Os procuradores também terão que respeitar um prazo para encerrar as investigações, 30 dias, contados da data de instauração, que só poderá ser prorrogado por meio de decisão fundamentada.”

Apenas ressaltamos o nosso pensamento quanto à impossibilidade de que o mesmo Promotor de Justiça ou Procurador da República (ou os mesmos profissionais ou a mesma equipe) que investigue possa, depois, valorando a prova por ele próprio colhida, oferecer denúncia. Não cremos ser isso possível.

Como afirma Aury Lopes Jr. “crer na imparcialidade de quem está totalmente absorvido pelo labor investigador é o que James Goldschmidt denomina de erro psicológico”(22). Para este autor, os “processos psicológicos interiores levam a um pré-juízo sobre condutas e pessoas”, minando “a posição de neutralidade(23) interior que se exige para que comece e atue no processo.” Observa, ainda, agora citando Oliva Santos, que “essas idéias pré-concebidas até podem ser corretas fruto de uma especial perspicácia e melhores qualidades intelectuais mas inclusive nesse caso não seria conveniente iniciar o processo penal com tal comprometimento subjetivo”(24).

Vejamos a respeito as observações de Antonio Evaristo de Morais Filho, citando Altavilla:

“Este fenômeno foi muito bem estudado por Altavilla, em sua famosa “Psicologia Judiciária’ (Porto, 1960, v. 5, p. 36-39), onde dedicou dois verbetes aos perigos das hipóteses provisórias, que podem “seduzir o investigador, de maneira a torná-lo daltônico nas apreciações das conclusões de indagações ulteriores’. Adverte o mestre italiano que, uma vez internalizada na mente do policial, do promotor ou do juiz, a procedência da hipótese provisória, cria-se em seu espírito a necessidade de demonstrar o que considera verdade, “à qual ele liga uma especial razão de orgulho’, como se a eventual demonstração da improcedência de sua hipótese “constituísse uma razão de demérito’. E assim, intoxicado por sua verdade, sobrevaloriza todos os elementos probatórios que lhe forem favoráveis e diminui “o valor dos contrários, até o ponto de não serem tomados em consideração num ato”(25).

Afinal de contas nas veias do Promotor de Justiça também corre o sangue dos pobres mortais… Observamos que o Supremo Tribunal Federal, em 12 de fevereiro do ano de 2004, ao julgar a ADI n.º 570, declarou parcialmente inconstitucional o art. 3.º da Lei do Crime Organizado (Lei n.º 9.034/90), que previa a possibilidade de o Juiz conduzir direta e pessoalmente investigação criminal.

Nesta decisão, ressaltou-se que “ninguém pode negar que o Magistrado, pelo simples fato de ser humano, após realizar pessoalmente as diligências, fique envolvido psicologicamente com a causa, contaminando sua imparcialidade”. Será que esta assertiva também não se aplicaria ao Promotor de Justiça? Será que o Promotor de Justiça, ao analisar uma peça investigatória, não deverá fazê-lo de maneira também imparcial? Concordamos com Marcos Zilli, ao afirmar que o fenômeno investigatório “concentra as energias para a construção de uma acusação de modo que o sujeito que a conduz dificilmente deixará de ficar a ela vinculado”(26).

Note-se que o Código de Processo Penal reputa impedido o Promotor de Justiça que “tiver funcionado” como autoridade policial, ex vi do art. 252, II, c/c art. 258 do Código de Processo Penal; óbvio que não é exatamente o caso, mas, mutatis mutandis, observamos que o legislador procurou afastar do subseqüente processo criminal aquele que investigou os respectivos fatos na fase pré-processual.

No julgamento de uma exceção de impedimento, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul deixou consignado que o objetivo do art. 252, II, CPP (que se aplica aos membros do Ministério Público art. 258, CPP) “é impedir quem funcionou na busca de elementos incriminadores de servir, posteriormente, como juiz no mesmo processo (…), estando “impedido de processar e julgar o réu o juiz que haja diligenciado a obtenção de elementos incriminadores do ato por ele praticado, antes de instaurada a ação penal”. (RT 526/434-435).

Bem a calhar a lição de M. Costa Manso: “A autoridade incumbida de descobrir o criminoso, especialmente nos casos graves e obscuros, é muitas vezes dominada pelo desejo de triunfar, de revelar argúcia e capacidade, perdendo, em conseqüência, a calma e a imparcialidade.” (O Processo na Segunda Instância e suas Aplicações à Primeira, São Paulo: Livraria Acadêmica, 1923, Vol. I, p. 615)(27).

Interessante, a título de ilustração, a observação feita por René Ariel Dotti:

“(…) forçoso é reconhecer que o sistema adotado em nosso país deixa muito a desejar quanto à eficácia e agilidade das investigações. E o maior obstáculo para alcançar estes objetivos decorre da falta de maior integração não somente das categorias funcionais da olícia Judiciária e do Ministério Público como também de seus integrantes. Observa-se, lamentavelmente e em muitas circunstâncias, a existência de um processo de rejeição que parece ser genético”(28) Este mesmo autor, em um alentado estudo sobre o assunto, após defender fundamentadamente a possibilidade da investigação criminal pelo Ministério Público, extrai as seguintes conclusões:

“Neste derradeiro artigo é possível resumir algumas conclusões fundamentais visando decifrar a esfinge da investigação criminal: 1.ª) O desafio não se resolverá pela interpretação de textos (CF, CPP, leis federal e estadual do MP, etc.); 2.ª) A Polícia Judiciária não detém (desde o advento do CPP) o monopólio da apuração dos ilícitos penais; 3.ª) O procedimento preparatório da ação penal deverá designar-se inquérito criminal em oposição ao inquérito civil, assim nominado pela Constituição (art. 129, III) e pela Lei n.º 7.347/85 (ação civil pública, art. 8.º, § 1.º); 4.ª) O inquérito criminal deve constituir um procedimento único, vale dizer, não se pode admitir a investigação paralela (inquérito, pela Polícia Judiciária, e Procedimento Administrativo, pelo Ministério Público); 5.ª) Uma reordenação constitucional e legal é indispensável para estabelecer o concurso de funções e superar o conflito de atribuições entre o MP e a Polícia Judiciária; 6.ª) Quando for necessária a abertura de inquérito criminal pela Polícia Judiciária, a colheita de prova deve ser sumária e, em breve prazo ser remetido ao MP; 7.ª) Recebendo os autos, o MP poderá propor o arquivamento, oferecer denúncia ou prosseguir, ele mesmo, com a investigação; 8.ª) Não haverá mais a baixa ou devolução de autos, rotina que alimenta a usina de prescrição; 9.ª) O chamado Procedimento Administrativo Investigatório do Ministério Público (ou designação correlata) ofende o princípio do devido processo legal porque: a) não existe prazo de encerramento; b) não há controle jurisdicional; c) o indiciado ou suspeito não tem a faculdade de requerer diligência, em atenção ao princípio da verdade material; 10.ª) O aludido procedimento administrativo tem sido utilizado como alternativa contra a burocracia, abuso de poder ou corrupção do inquérito policial; 11.ª) Uma nova concepção de Política Processual Penal deverá modificar textos constitucionais e legais para atribuir ao MP o controle da investigação, sem prejuízo do trabalho auxiliar da Polícia Judiciária; 12.ª) A investigação criminal é exercício do poder estatal; deve coordená-la o órgão que promove a ação penal de natureza pública”(29).
Atentos àquela observação supra (verdadeira e preocupante), esclarecemos que tais considerações, longe de representarem obstáculos à atuação policial, são apenas elucidações que devem ser feitas a respeito das prerrogativas do Ministério Público, nunca se olvidando da importância da polícia judiciária.

Devemos, na lição do maior de todos os Promotores de Justiça, “no trato com as autoridades policiais (…), além do respeito devido às prerrogativas daqueles colaboradores e não subordinados, pugnar pelo prestígio que advém da sua correção”(30)

Julita Lemgruber, Leonarda Musumeci e Ignacio Cano, em excelente estudo sobre o controle externo da polícia no Brasil, atentaram para “o fato de o Ministério Público ter poder de investigar por conta própria crimes cometidos por policiais e de iniciar o processo judicial à revelia dos procedimentos conduzidos pelas Corregedorias é percebido como ´invasão” dos promotores na área de competência das polícias. (…) Portanto, além de uma inércia interna, a limitada atuação do Ministério Público nessa área deriva também do acirramento das resistências corporativas, sustentadas pelo próprio hibridismo do modelo processual brasileiro”(31).

Notas:

(21) Perspectivas para o Direito Penal e para um Ministério Público Republicano, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 335.
(22) Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim, nº. 127 Junho de 2003, p. 11.
(23) Quanto à neutralidade, faz-se uma ressalva, pois não acreditamos em um Juiz neutro (como em um Promotor de Justiça ou um Procurador da República neutro). Há sempre circunstâncias que, queiram ou não, influenciam em decisões e pareceres, sejam de natureza ideológica, política, social, etc., etc. Neste sentido, veja-se a lição de Rodolfo Pamplona Filho, “O Mito da Neutralidade do Juiz como elemento de seu Papel Social” in “O Trabalho”, encarte de doutrina da Revista “Trabalho em Revista”, fascículo 16, junho/1998, Curitiba/PR, Editora Decisório Trabalhista, págs. 368/375, e Revista “Trabalho & Doutrina”, nº 19, dezembro/98, São Paulo, Editora Saraiva, págs.160/170.
(24) Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pp. 154/155.
(25) Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n.º 19, p. 106.
(26) Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim, nº. 188 Julho de 2008, p. 02.
(27) Apud Roberto Delmanto Junior, “As Modalidades de Prisão Provisória e Seu Prazo de Duração”, Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2.ª edição, 2001, p. 123 (nota de rodapé).
(28) O Ministério Público e a Polícia Judiciária – Relações formais e desencontros materiais, in Ministério Público, Direito e Sociedade, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 135.
(29) Site www.parana-online.com.br Caderno Direito e Justiça, 28 de março de 2004.
(30) Roberto Lyra, Teoria e Prática da Promotoria Pública, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 121.
(31) “Quem Vigia os Vigias?”, Rio de Janeiro: Record, 2003, págs., 124/125.

Rômulo de Andrade Moreira é promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do Ministério Público do Estado da Bahia. Ex-assessor especial do procurador-geral de Justiça e ex-procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-Unifacs na graduação e na pós-graduação. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Unifacs (Curso coordenado pelo Professor Calmon de Passos). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da Unifacs. Membro da Association Internationale de Droit Penal, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Autor das obras “Direito Processual Penal”, Salvador: JusPodivm, 2007; “Juizados Especiais Criminais”, Salvador: JusPodivm, 2007 e “Estudos de Direito Processual Penal”, São Paulo: BH Editora, 2006. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia, da Faculdade Jorge Amado e do Curso JusPodivm.