Talvez muitos não se recordem do juiz Nicolas Marshall. Por isso vale a pena lembrar que durante certo tempo foi exibido um seriado de TV no qual o juiz (Nicolas Marshall) era um respeitável e honrado juiz durante o dia, cumprindo as leis em vigor, os prazos processuais, os direitos dos acusados e, no entanto, no período da noite, longe do tribunal, com roupas populares, cabelos soltos – já que os tinha compridos -, decidia “fazer justiça”. O seriado, por isso, denominava-se “Justiça Final”. Pretendendo o bem da sociedade e, antes das vítimas – evidente -, procurava por todas as formas aniquilar, matar e “resolver” os casos criminais (leia-se “criminosos”) que conhecia, ao arrepio da Lei, claro. Acreditava que a Justiça ordinária era incapaz de “dar a devida resposta aos criminosos” e, então, por suas mãos, enfim, aplicava a (sua boa) justiça. Era um espécime que mesmo exercendo funções estatais, preferia, esgueirando-se no submundo, protagonizar a função de justiceiro; Justiceiro incontrolado, movido por suas paixões pessoais.
Esse seriado retirado do fundo baú faz surgir uma reflexão importante atualmente: considerando que os resultados de controle social da atuação como juiz não resultam no que se esperava, será que está justificada a atuação como vingador social?
A resposta é negativa! O preço de se viver numa sociedade democrática é o respeito pela diferença e proibição da vingança privada. O Estado é quem assume a legitimidade para aplicar qualquer sanção, mediante um juiz imparcial (Teoria Contratualista, em especial John Locke), não se podendo admitir a vingança pessoal (própria ou em nome de terceiros). No Brasil, aliás, além de incompatível com o regime democrático adotado pela Constituição Federal de 1988, configura crime (Código Penal, art. 345).
Todavia, diante da ineficiência dos mecanismos de controle existentes, muito em decorrência do modelo repressor adotado, o qual reproduz a injustiça social reinante, valendo por todos a crítica formulada pelo saudoso Professor Alessandro Baratta, acabam surgindo aqueles que “sabem o que é melhor para sociedade” e buscam aplicar as penas pelas próprias mãos: surgem os Juízes Justiceiros, inspirados no herói Nicolas Marshall.
Cuida-se, no fundo, do “Complexo de Nicolas Marshall”. Esse complexo atua na maioria dos casos de forma inconsciente na busca legítima de se cumprir o papel jurisdicional. Acaba se instalando na prática jurídica nos espaços de discricionariedade (ilegítimos) abertos na legislação, tão bem criticados por Luigi Ferrajoli (Direito e Razão), os quais deixam para “bondade” do órgão julgador a aplicação da Lei.
O problema é saber, como diz Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, qual é o critério, ou seja, o que é a `bondade’ para ele. Um nazista tinha por decisão boa ordenar a morte de inocentes; e neste diapasão os exemplos multiplicam-se. Em um lugar tão vago, por outro lado, aparecem facilmente os conhecidos `justiceiros’, sempre lotados de `bondade’, em geral querendo o `bem’ dos condenados e, antes, o da sociedade. Em realidade, há aí puro narcisismo; gente lutando contra seus próprios fantasmas.
Resultado disso é que os vingadores sociais, muitos deles usurpando da parcela de poder estatal que lhes é conferida como juízes, ou seja, no dever constitucional de garante dos direitos Fundamentais e Humanos, nem precisam tirar suas becas para ceder espaço ao “Complexo de Nicolas Marshall”; fazem-no em suas decisões mediante recursos retóricos (Brum) aceitos pelo senso comum teórico (Warat), em meras aplicações de lógica dedutiva no âmbito penal. Dentre estes existem dois, os quais classifico utilizando a boa dogmática (não resisto): o doloso, que conhece a teoria do delito, imputação objetiva, tipo do injusto, culpabilidade, dentre outras discussões contemporâneas, mas mesmo assim acredita que somente desta forma se faz justiça. E o segundo, o culposo que, por incapacidade teórica e de vontade acaba reeditando o raciocínio dedutivo em nome da “manutenção da paz social”, sendo incapaz de discutir seriamente qualquer das questões antes indicadas. É o juiz papagueador (aprende para repetir, somente).
E, ao final, a pergunta que remanesce é a formulada por Agostinho Ramalho Marques Neto: quem nos salva da bondade dos bons (juízes)?. Cuidado ao pisar no tapete….
Deixo claro, com L. F. Barros, que essa é uma crítica de ficção em que, como em todas as outras do gênero, quaisquer semelhanças com situações e personagens reais foi cuidadosa, meticulosa e intencionalmente planejada. Todas as dessemelhanças com a bizarra realidade dos personagens e teorias aqui apresentados devem-se apenas à falta de habilidade descritiva do autor.
Alexandre Morais da Rosa exerce a função de juiz estadual em SC. É doutorando em Processo Penal pela UFPR e mestre pela UFSC. Durante muito tempo sofreu de “normalpatia” (L.F. Barros). Email:
amr8052@tj.sc.gov.br