O Judiciário e os subprodutos da mídia

O tema “Mídia e Judiciário” sempre será atual, instigante e de extrema importância para quem reflete sobre a nacionalidade brasileira, os rumos e a cidadania deste País. O tema traz em si dois valores relevantes: justiça e liberdade. Sem eles, a aventura humana sobre este planeta seria realmente desastrosa. Tais conceitos – justiça e liberdade – não podem existir sem a necessária interação. Liberdade sem justiça equivale a um retorno à época das selvas, onde o mais forte tudo pode e o mais fraco tem apenas o direito elementar de fugir ou ser devorado. Justiça sem liberdade também é um conceito absolutamente vago e sem sentido.

Com esses princípios em mente, quero analisar alguns aspectos do poder sociológico que tem a mídia de massas, tanto no Brasil quanto em qualquer área do mundo civilizado. Dotada de avançada tecnologia, a mídia hoje tem possibilidades de exercício do verdadeiro poder social sem precedentes na história da humanidade. Certamente, há 20 ou 30 anos, ninguém poderia antever a imensa capacidade que a mídia tem de nos fazer sentir, dentro da nossa casa, como se estivéssemos em qualquer lugar do mundo, fornecendo informações absolutamente atualizadas sobre o que se passa naquele momento, no mais distante local do planeta.

A imprensa brasileira, que até pouco tempo atrás sofria de contingências e dificuldades, inclusive frente a regimes de exceção, por sorte e por vocação de muitos é hoje uma imprensa não servil e liberta de qualquer tipo de governo. Por outro lado, vemos, sobretudo a grande imprensa, nas mãos de grupos econômicos poderosos. Até onde não se corre o risco – neste e em outros países, porque isso não é privilégio do Brasil – de estar tratando a informação com o fetiche da mercadoria? Até onde não podemos imaginar que a notícia, tal qual a mercadoria, tem um preço e rende lucros? Estas são questões sobre as quais devemos nos debruçar.

Os meios de comunicação de massa lidam com aspectos de extrema relevância e que despertam preocupação. Em primeiro lugar, eles repassam valores culturais, sociais e morais. Não são eles neutros em si, até porque, embora sejam instrumentos, são evidentemente preenchidos com conteúdos. Se, de um lado, esse grande instrumento, que é a comunicação de massa no mundo, contribuiu para uma elevação dos níveis de cidadania, por outro, não podemos deixar de ver que, paralelamente, houve a geração de alguns subprodutos culturais. Costumo citar como exemplo o fato de que, em dezembro, no Natal, fazemos chegar às nossas casas, para nossas crianças, um Papai Noel com touca de lã, botas, andando no gelo, num trenó puxado por cervos. Ou seja, um produto cultural – ainda que da maior valia, porque lida com o lado lúdico das crianças – absolutamente importado e que nada tem a ver com a nossa cultura, sobretudo com a cultura regional do nosso País, que é tão rica.

Esse subproduto é tão ou mais agudo na medida em que a mídia de massas, ao contrário das relações interpessoais, se utiliza de uma linguagem particularizada, distinta da linguagem normal. A linguagem da mídia é, antes de tudo, uma linguagem impressiva. Ela vai criando no subconsciente de quem a vê – pela repetição das notícias e pelos valores ali embutidos – uma forma de colagem, sobretudo quando utiliza aspectos lúdicos, como música, beleza, cor, movimento.

A linguagem da mídia, de modo geral, também é emocional. Ela não lida, na maioria das vezes, com a inverdade, mas com alguma meia-verdade. Não me esqueço de uma determinada eleição em que dois candidatos concorriam ao governo do Rio Grande do Sul: um saíra lá de trás, segundo as pesquisas, com 5% ou 6% das intenções de votos; o outro tinha 35% ou 40%. Sucessivas pesquisas mostraram que o candidato que estava atrás encostara no outro candidato: um estava com 25% e o outro com 24%. O candidato que saíra na frente continuava na ponta. Qual foi a notícia estampada no jornal, então? “O candidato A segue na frente.” Ora, qual era a notícia jornalística? O outro candidato estava subindo! Esse era o fato jornalístico. Houve mentira nisso? Não, não houve. O fato era rigorosamente verdadeiro, mas, do ponto de vista jornalístico, me parece que não era o mais correto.

Outra característica da linguagem da mídia é ser monológica, não dialógica. Ela se faz, antes de tudo, em uma única e só direção. Isto não é um mal em si, mas também traz conseqüências, na medida em que não existe o diálogo. O locutor fala e nós ouvimos, não interagimos, não retrucamos, não divergimos dialogicamente. A mídia, por outro lado, lida com o nosso subconsciente. Muitas vezes, então, captamos não o que está posto, mas o que é suposto na notícia ou num programa qualquer. O filósofo Bertrand Russel disse que, do ponto de vista sociológico – não institucional – existem três formas de poder: o poder de punir, o poder de premiar e o poder de condicionar. Punindo e premiando, posso fazer com que uma pessoa faça o que eu quero, mas não consigo fazer com que ela pense o que eu penso. Esse é o poder com que lida o Judiciário. O poder de condicionar é o verdadeiro poder sociológico, porque através dele posso fazer com que uma pessoa faça o que eu quero e – mais – posso fazer com que ela pense o que eu penso. E, mais ainda: continuará ela pensando que pensa por si mesma. Isso é poder, efetivamente, e a mídia lida com esse poder.

E quem controla tudo isso? A quem é dado exercer algum tipo de controle social sobre essa imensa e poderosa atividade, assim como sobre qualquer outra atividade humana nos limites deste País? O Poder Judiciário. É ele quem controla tudo isso – e aí vai uma autocrítica -, com uma linguagem absolutamente diferente da linguagem da mídia, uma linguagem empolada, muitas vezes cheia de latinismos, hermética, de quem se comunica mal, quando se comunica. Muitas vezes, essa linguagem chega à beira de uma certa esquizofrenia, de um apartamento da realidade, lidando só com formas abstratas e sem uma interação maior com o mundo que nos cerca.

Qual a maneira de controle, do ponto de vista formal? O Judiciário tem um ritmo necessariamente distinto do ritmo da imprensa. A notícia é um fato instantâneo. Se não for instantâneo, deixa de ser notícia, perde o valor jornalístico. O juiz, ao contrário, não lida com o fato instantâneo, e nem pode. O juiz trabalha com a história do fato. Ele reconstitui processualmente o fato e decide sobre ele. Portanto, o enfoque há de ser necessariamente distinto. A atuação do juiz tem que ser reflexiva, não pode e não deve ser imediata. Para nós, acostumados com o processo, o julgamento e a execução imediatos configuram um linchamento.

Com todas essas nuances, acaba existindo uma certa falta de sintonia entre Judiciário e imprensa – ambas atividades imprescindíveis ao exercício da cidadania e que, antes de se contraporem, têm que, certamente, aprender a conviver com suas sagradas dessemelhanças.

Cláudio Baldino Maciel

é juiz no Rio Grande do Sul e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), onde coordena a Comissão de Estudos Constitucionais e Reforma do Judiciário.

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