O presidente da República tem todo o direito de defender os quadros que servem ao governo. Tem também o dever de cumprir fielmente a missão constitucional. Que começa com o rígido cumprimento da lei. Nos regimes democráticos, os mandatários devem ser os primeiros a dar o exemplo de fidelidade e compromisso aos princípios do Estado de Direito. Nas democracias consolidadas, os espaços da lei não são apenas defendidos tenazmente pela instituição responsável pela administração e aplicação da Justiça, o Poder Judiciário, mas profundamente internalizados na consciência dos cidadãos, razão pela qual o edifício da cidadania repousa sobre bases sólidas e princípios irrefutáveis. No Brasil, a consciência sobre o estado da legalidade ainda é frouxa e freqüentemente submetida ao jogo das conveniências, como parece a questão envolvendo os presidentes do Banco Central, Henrique Meirelles, e do Banco do Brasil, Cássio Casseb, aquele acusado de ter feito evasão fiscal, e este de favorecer a campanha eleitoral do PT. Ao decidir que ambos devem permanecer no governo, o presidente Lula, adiantando-se à manifestação da Justiça, investe-se no papel de magistrado e, mais uma vez, levanta o véu que cobre o presidencialismo brasileiro com a cor vermelha da corte imperial petista.
Não existe melhor definição para tipificar essa corte do que a manifestação do próprio presidente do PT, José Genoino, em tom de desabafo: “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Na esteira dessa sábia lição que faria inveja aos absolutistas de reinos antigos e ditadores da atualidade, uma coisa é um diretor do Banco do Brasil, Luiz Augusto Candiota, sonegar informações sobre patrimônio no exterior, outra coisa é Henrique Meirelles fazer a mesma coisa. Claro, os pesos são diferentes, tendo um mais importância que outro, mesmo que esse outro seja o condutor de uma instituição que é a própria alavanca da credibilidade internacional do Brasil.
A saída do presidente do Banco Central, convenhamos, seria um evento de alta repercussão, chegando às bordas do mercado financeiro e com força suficiente para, no curto prazo, corroer a imagem do País. Portanto, se sua permanência no BC se transforma em questão transcendental de governo, conforme parece enxergar o presidente Lula, a alternativa mais festejada passa a ser a hipótese “genuína” de que, em democracias que ainda não pisam fundo no chão, como a nossa, o Estado de Fato se sobrepõe ao Estado de Direito. Em outras palavras, a legalidade é a visão rasteira do legislador ordinário incrustado no Poder Executivo. As denúncias? Ora, não passam de “acusações infundadas que beiram o denuncismo”, na dura resposta de José Dirceu, ministro-chefe de uma Casa Civil cada vez mais Casa Imperial, a quem deve se recordar que foi o PT dos tempos de outrora a principal tuba de ressonância do denuncismo irresponsável.
Por mais que abramos as comportas cognitivas para procurar entender o espírito democrático da elite petista que dá as cartas no País, fica extremamente difícil aceitar os critérios balizadores de algumas decisões. O perdão das dívidas (US$ 36 milhões) do Gabão, há 37 anos comandado com mãos de ferro pelo ditador Omar Bongo, somando-se ao dinheiro doado a mais duas cidades africanas, ao perdão de parte da dívida de Moçambique e, ainda, à dívida de US$ 52 milhões da Bolívia (além da concessão de uma linha de créditos no montante de US$ 600 milhões), só pode ser creditado ao genoma generoso do nosso presidente ou à sua excepcional capacidade para projetar a liderança brasileira no mapa dos países periféricos. A questão afetiva até justifica nobres gestos humanitários, porquanto o Brasil tem uma gigantesca dívida social para com os irmãos africanos. A questão estratégica de posicionamento do Brasil no cenário das Nações que passa pela conquista de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU também justifica investidas mais fortes no campo diplomático.
Mas as boas razões internacionais não podem se sobrepujar às causas humanitárias nacionais. Se, para perdoar dívidas, Lula argumenta com o bordão de que “na mesa em que come um, comem dois, em que comem dois, comem quatro”, precisa, primeiro, garantir a comida dos convivas nacionais. Na mesa brasileira, há cerca de 50 milhões de cidadãos (dados que sempre estiveram na ponta da língua do PT) que não comem as três refeições tão referidas pelo presidente em suas perorações. Se a questão é humanitária, não seria o caso de plantar essa virtude primeiramente nos espaços da nossa exclusão social? E se a questão é a de conquistar votos para garantir melhor posição no ranking da ONU, o custo da empreitada acabará desviando sobras (temos mesmo sobras?) que deveriam fazer parte do cardápio social. A propósito, o Brasil está em 4o lugar entre os países que mais pagam dívida externa no mundo e, pelo que se sabe, os nossos credores não são nem um pouco devotos dos padroeiros do perdão.
A generosidade, na bela lição de Spinoza, é o dom de se oferecer a uma pessoa aquilo que ela não tem, mas que pertence a quem oferta. Dar comida a quem tem fome é um ato justo e generoso. Mas o que espanta na generosidade concebida pelo governo do PT é a aplicação enviesada da virtude. Algo como sua utilização pela metade. Quem entrega deve ser o dono dos bens ofertados. Aqui é onde a coisa pega. Dá o que não lhe pertence. O PT tem projetado tanto os limites do partido no território do Estado, que começa a ficar difícil distinguir onde começa um espaço e termina outro. O Banco do Brasil comprando 70 mil ingressos para ajudar na aquisição de uma sede para o PT ou o BNDES abrindo os cofres (R$ 21 milhões) para o programa de informatização do partido são situações que expressam o conceito petista de ser generoso. Pior é constatar que essa cultura de fazer generosidade com a coisa alheia começa a ser o eixo-mor do Império petista.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.