O homem e a natureza: as palavras de um poeta em pedaços de barro

Há homens, muitos dos quais artistas, que dispensam apresentações. Brennand é um deles. Mas, porque não tentar dizer pobres e incipientes palavras (afinal, diante da magnitude da obra do artista as palavras, ditas em signos gráficos, são poucas, pobres demais para descrevê-lo?

Francisco Brennand, 77 anos, escultor pernambucano. Basta. Descrever o escultor é quase impossível diante da complexidade de sua obra, no entanto, melhor que tentar entendê-lo, é tentar senti-lo. Qualquer que seja a tentativa nesse sentido, sempre haverá uma falta marcada pelo espaço físico do qual estas obras foram retiradas. Para tentar sentir a obra do escultor, nada se compara estar embrenhado à atmosfera que as rodeiam, as várzeas do Recife, a Cerâmica São João, mundo babilônico, onírico, construído em mais de três décadas de trabalho. Brennand é o poeta do barro, é o homem que escreve com pedaços de barro levados ao fogo.

No entanto, como não é possível a todos os mortais uma viagem ao Recife para deliciar-se com o mundo de Brennand, o "Museu do Olho" traz para Curitiba uma das mais interessantes exposições para serem vistas por aqueles que perambulam de férias, ou não, cidade afora. Se não é possível viver, na totalidade, a intensidade da criação do autor fora do contexto da Cerâmica São João, é perfeitamente válida a tentativa de inteirar-se ao universo dele, ainda que parcialmente. É o princípio da viagem.

Muito tem-se dito da obra de Brennand, uns o chamam de ateu, outros de imoral, outros de impuro, de libertário, mas há também os que o têm como criativo, surreal, instigante, poeta. Seu universo, povoado por seres ora mitológicos, ora inimagináveis, ora enigmáticos, são frutos, ou filhos, que emergem das profundezas do ventre do escultor. Aliás, ventre e ovo são formas recorrentes no trabalho dele. Essas formas fatalmente remetem o observador ao centro de si próprio, tornando-o observador de sua própria condição. Brennand atira sem medo ou pudor, nós, homens comuns, na infinitude de nossas indagações, fazendo, assim, com que cada um possa encontrar, se necessário for, razões para olhar e dar sentido, ou sentidos, nas palavras que ele diz, através de pequenos e grandes pedaços de barro.

A superioridade da obra do pernambucano está justamente no fato de ele ter escolhido a mais antiga das matérias para lhe servir como meio de expressão, trabalhada pela mão do homem (talvez a única trabalhada pela mão divina, na molduração de Eva), e admirada pelos olhos de todos. A partir do barro, Brennand dá a luz aos seres que saltitam e brincam alegres no espaço celeste. Eles saem da terra, mas vivem entre ela e o céu, por isso às vezes não o compreendemos, afinal, não conhecemos as criaturas que habitam os espaços celestes.

Ao prová-las pelo fogo, forma de nascimento obrigatório para todas elas, tem-se a sensação que é pela força dele que elas se mantém vivas, mesmo quando "trincadas", possuem forças próprias, como um animal qualquer, que nasce sem as grandes características dos melhores da espécie, mas sobrevive em seu habitat, numa luta constante entre a perfeição e a sobrevivência. A identidade de cada uma dessas obras é garantida mesmo quando a produção se dá em grande escala (há obras que se completam nos pares) e esses pares emanam luzes, juntos ou separados, com a mesma intensidade.

Visitar uma exposição deste quilate exige do observador mais que olhos nus, exige alma simples, depurada, desarmada. Exige-se ainda, só pra lembrar, tempo. Não o cronológico, esse é imprescindível, afinal são quase 400 criaturas habitando o MON, mas tempo de apuração. É necessário que o observador deixe o olhar se apurar, aos poucos, para cristalizar a experiência. Os ovos, os mitos, as criaturas, as frutas, todos filhos incontestáveis do ventre, ou da mente, criadores e ilimitados de Francisco Brennand, nos faz, por um instante, pensar que habitamos um outro planeta, cheio de encanto e magia, onde o sonho e a fantasia, são as regras ímpares para a sobrevivência.

Escreveu Brennand, em seu diário, no dia 11 de novembro de 1971, data em que entrou, com sua parafernália, na antiga fábrica do pai "(…) entrarei hoje nesta velha fábrica, ainda com o sentimento de perda; contudo, não faz mal, melhor que seja assim.(…)". Na certa, havia naquele momento, por parte do autor, o pressentimento que, ao gerar um filho, ainda que suas entranhas sejam compostas por moléculas de argila, não o geramos para o ninho, pelo contrário, o colocamos no mundo, e de certa forma perdemos, para sempre, a paternidade sobre ele. Sobre esses filhos criados a partir do barro, tantos outros pais reclamarão paternidade, numa tentativa vã de tornar seu o que a todos pertence. Pena é deixar esses "filhos" irem embora sem conhecê-los. Pena é não ir até lá, reclamar também a paternidade sobre um desses, afinal, dentro de cada um de nós, habitam seres da mesma linhagem, do mesmo DNA e com a mesma beleza.

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